Levei anos para entender que por trás dessa Gemütlichkeit, ou aconchego, escondiam-se amargura e medo. Nós estávamos crescendo no meio de homens que se sentiam um bando de perdedores. Sua geração havia começado a Segunda Guerra Mundial e perdera. Durante o conflito, meu pai deixara a Gendarmerie para se tornar policial do exército alemão. Serviu na Bélgica, na França e no norte da África, onde pegou malária. Em 1942, por pouco não foi capturado na Batalha de Leningrado, a mais sangrenta da guerra. O prédio em que ele estava foi bombardeado pelos russos. Ele passou três dias soterrado pelos escombros, fraturou a coluna e foi atingido por estilhaços nas duas pernas. Teve que passar meses em um hospital da Polônia antes de se recuperar e poder voltar à Áustria e tornar a integrar a polícia civil. Além do mais, levando em conta o que ele havia presenciado, quem poderia dizer quanto tempo suas feridas psíquicas levaram para cicatrizar? Eu ouvia os homens falarem sobre isso quando estavam embriagados e posso imaginar quanta dor as lembranças lhes causavam. Sentiam-se todos derrotados e também temerosos de que, a qualquer momento, os russos fossem aparecer e levá-los embora para reconstruir Moscou e Leningrado. Esses homens sentiam raiva. Tentavam reprimir essa fúria e a humilhação, mas a decepção estava entranhada bem fundo em seus ossos. Pense bem: você ouve a promessa de que vai se tornar cidadão de um novo e grandioso império. Todas as famílias poderão gozar dos mais modernos confortos. Em vez disso, você volta para casa e encontra uma terra arrasada, com pouquíssimo dinheiro, quase nenhuma comida, onde tudo precisa ser refeito do zero. O território está tomado pelas forças de ocupação, ou seja, você nem tem controle sobre o próprio país. Pior ainda: você não tem como assimilar as experiências pelas quais passou. Como lidar com um trauma inacreditável desses quando ninguém sequer tinha permissão para tocar no assunto?
Em vez da glória prometida, o Terceiro Reich estava sendo oficialmente apagado da história. Todos os funcionários públicos – na administração local, nas escolas, na polícia – tiveram que passar pelo que os americanos chamavam de desnazificação. Você era interrogado e todo o seu histórico era vasculhado para determinar se tinha sido um nazista convicto ou se estivera em posição de cometer crimes de guerra. Tudo o que fosse relacionado ao período nazista era confiscado: livros, filmes, cartazes – até mesmo diários e fotografias pessoais. Você tinha que entregar tudo: o objetivo era riscar a guerra da sua memória.
Meinhard e eu tínhamos apenas uma vaga noção disso tudo. Na nossa casa havia um lindo livro de ilustrações que costumávamos pegar emprestado para “brincar de padre” e fingir que aquilo era a Bíblia, porque na verdade ele era bem maior do que a Bíblia da nossa família. Um de nós ficava em pé, segurando o livro aberto, enquanto o outro recitava a missa. Na verdade, o livro era um álbum a ser completado para promover os feitos grandiosos do Terceiro Reich. Havia seções para diferentes categorias: obras públicas, túneis e represas em construção, comícios e discursos de Hitler, imensos navios novos, novos monumentos, grandes batalhas travadas na Polônia. Cada categoria tinha páginas em branco numeradas e, sempre que a pessoa ia a uma loja comprar alguma coisa ou investia em um bônus de guerra, tirava um retrato também numerado que colava no livro. Ao completar o álbum, a pessoa ganhava um prêmio. Eu adorava as páginas que retratavam magníficas estações de trem e potentes locomotivas cuspindo vapor e ficava fascinado com a imagem de dois homens andando por uma estrada de terra em um pequeno carrinho aberto, bombeando uma alavanca para cima e para baixo e fazendo o carrinho avançar – aquilo para mim era um retrato da aventura e da liberdade.
Meinhard e eu não tínhamos a menor ideia do que estávamos vendo, mas certo dia, quando fomos brincar de padre, o álbum tinha desaparecido. Viramos a casa do avesso. Por fim, fui perguntar a minha mãe aonde aquele lindo livro tinha ido parar. Afinal de contas, aquilo era a nossa Bíblia! Tudo o que ela respondeu foi: “Tivemos que entregar o livro.” Eu costumava pedir ao meu pai que me contasse algo sobre a guerra, ou então lhe fazia perguntas sobre o que ele tinha visto ou as experiências pelas quais tinha passado. Sua resposta era sempre a mesma: “Não há nada para contar.”
A resposta dele para a vida era a disciplina. Tínhamos uma rotina rígida e nada nela podia mudar: acordávamos às seis da manhã, e eu ou Meinhard tínhamos que ir buscar leite na fazenda vizinha. Quando ficamos um pouco mais velhos e começamos a praticar esportes, o exercício físico entrou para o rol das tarefas obrigatórias, e tínhamos que fazer jus ao café da manhã com abdominais. À tarde, depois de terminados os deveres escolares e as tarefas domésticas, meu pai nos fazia jogar futebol, independentemente do tempo que estivesse fazendo. Quando errávamos alguma jogada, sabíamos que ele gritaria com a gente.
Meu pai acreditava com essa mesma convicção em treinar nossos cérebros. Aos domingos, depois da missa, ele nos levava para um passeio em família: podia ser uma visita a outro povoado, uma peça de teatro, ou vê-lo se apresentar com a banda da polícia. Então, à noite, tínhamos que escrever um relatório de pelo menos 10 páginas sobre nossas atividades. Ele nos devolvia os relatórios cheios de comentários escritos em vermelho e, se tivéssemos errado a grafia de alguma palavra, éramos obrigados a copiá-la 50 vezes.
Eu amava meu pai e queria muito ser igual a ele. Lembro-me de uma vez, quando era pequeno, em que vesti seu uniforme de policial e subi em uma cadeira em frente ao espelho. O paletó descia quase até meus pés, mais parecendo uma túnica, e o quepe caía por cima do meu nariz. Mas ele não tinha paciência para os nossos problemas. Se quiséssemos uma bicicleta, dizia-nos para ganhar nosso próprio dinheiro e comprá-la. Nunca soube o que era ser bom o suficiente, forte o suficiente, inteligente o suficiente. Meu pai sempre me dizia que havia como melhorar. Muitos meninos teriam ficado traumatizados com essa exigência toda, mas no meu caso a disciplina surtiu efeito. Eu a transformei em determinação.
Meinhard e eu éramos muito chegados. Dormimos no mesmo quarto até eu completar 18 anos e sair de casa para me alistar no exército, mas eu nunca quis que fosse diferente. Até hoje me sinto mais confortável quando tenho alguém para conversar até pegar no sono.
Éramos ultracompetitivos, como os irmãos muitas vezes são – vivíamos tentando superar um ao outro e conquistar a aprovação de nosso pai, que, naturalmente, também era um atleta competitivo. Ele organizava corridas para nós e dizia: “Agora vamos ver quem é o melhor de verdade.” Éramos maiores do que a maioria dos outros meninos, mas, como eu era um ano mais novo, em geral quem ganhava essas competições era Meinhard.
No entanto, eu estava sempre atento para encontrar jeitos de tomar a dianteira. O ponto fraco de Meinhard era o medo do escuro. Aos 10 anos, ele terminou a primeira etapa do ensino fundamental, de quatro anos, em nosso povoado e ingressou na Hauptschule, que ficava em Graz, do outro lado do morro, para cursar a segunda etapa. Para chegar lá era preciso pegar o transporte público, e o ponto de ônibus ficava a uns 20 minutos de caminhada da nossa casa. O problema era que as atividades escolares em geral duravam até bem depois de o sol se pôr nos curtos dias de inverno, então Meinhard precisava voltar para casa após escurecer. Tinha muito medo de voltar sozinho, então passou a caber a mim a tarefa de buscá-lo no ponto de ônibus.