Dali a um ou dois dias, Meinhard aparecia, em geral na casa de algum parente, ou às vezes apenas escondido na casa de um amigo perto da nossa. Eu sempre ficava pasmo por ele não sofrer consequências. Talvez meu pai só estivesse tentando pôr panos quentes na situação. Em sua carreira de policial ele já vira fugas suficientes para saber que punir Meinhard talvez só piorasse o problema. Mas aposto que isso exigia todo o seu autocontrole.
Meu desejo era sair de casa sem atropelos. Como ainda era criança, resolvi que a melhor forma de me tornar independente era cuidar da minha vida e ganhar meu próprio dinheiro. Eu fazia qualquer tipo de trabalho. Não via o menor problema em pegar uma pá e cavar. Houve um verão, durante as férias escolares, em que um morador de nosso povoado me conseguiu um emprego na fábrica de vidro de Graz em que ele trabalhava. Minha tarefa era transferir uma enorme pilha de cacos de vidro para um recipiente com rodinhas usando uma pá, empurrá-lo pela fábrica e despejar o vidro dentro de um tonel para que tornasse a ser derretido. Ao final de cada dia, recebia o pagamento em espécie.
No verão seguinte, ouvi dizer que talvez houvesse trabalho em uma serraria de Graz. Peguei minha mochila e preparei um pão com manteiga para matar a fome até voltar para casa. Então tomei um ônibus até a serraria, juntei coragem, entrei e pedi para falar com o dono.
Fui conduzido até o escritório e lá estava ele, sentado na cadeira.
– O que você quer? – perguntou ele.
– Estou procurando emprego.
– Quantos anos você tem?
– Catorze.
E ele respondeu:
– O que você quer fazer? Não aprendeu nada ainda!
Mesmo assim, ele me levou até a fábrica e me apresentou a alguns dos homens e mulheres que operavam uma máquina que transformava restos de toras de madeira em aparas para serem usadas em lareiras.
– Você vai trabalhar nesta seção aqui – disse ele.
Comecei naquele dia mesmo e passei o resto das férias trabalhando na serraria. Uma das minhas tarefas era transferir, com uma pá, imensas montanhas de serragem para caminhões que a levavam embora. Ganhei 1.400 schillings, o equivalente a 55 dólares. Era um bom dinheiro na época. O que me deu mais orgulho foi que, embora eu fosse criança, eles me pagaram um salário de adulto.
Eu sabia exatamente o que fazer com aquele dinheiro. Passara a vida inteira usando roupas herdadas de Meinhard, pois nunca tinha tido nenhuma roupa minha. Eu havia começado recentemente a me interessar por esportes – fazia parte do time de futebol da escola – e por acaso, nesse ano, as primeiras roupas esportivas estavam começando a entrar na moda: calça comprida preta e casaco preto com zíper na frente. Eu achava esses conjuntos o máximo e chegara a tentar mostrar a meus pais fotos de atletas vestidos assim nas revistas. Mas eles tinham dito que não, que aquilo era jogar dinheiro fora. Então a primeira coisa que comprei foi um conjunto de calça e casaco esportivos. Com o dinheiro que sobrou, adquiri uma bicicleta. Não tive o suficiente para uma nova, mas em Thal havia um senhor que montava bicicletas com peças usadas, e pude comprar uma das suas. Ninguém mais na nossa casa tinha bicicleta: meu pai trocara a dele por comida depois da guerra e nunca mais comprara outra. Mesmo que a minha bicicleta não fosse perfeita, ser dono daquelas rodas significava ser livre.
CAPÍTULO 2
A construção de um corpo
MINHA LEMBRANÇA MAIS FORTE DO ÚLTIMO ANO na Hauptschule são as simulações de emergência. Em caso de conflito nuclear, as sirenes tocariam. Nos testes, tínhamos que fechar os livros e nos esconder debaixo das carteiras, com as cabeças entre os joelhos e os olhos bem fechados. Até mesmo um menino de 10 anos podia entender quanto isso era ridículo.
Em junho de 1961, ficamos todos grudados na televisão assistindo à cúpula de Viena entre o novo presidente americano, John F. Kennedy, e o premiê soviético, Nikita Kruschev. Raras eram as famílias que tinham TV em casa, mas conhecíamos uma loja de material elétrico na Lendplatz de Graz em cuja vitrine havia dois aparelhos. Corremos até lá e ficamos em pé na calçada para assistir às notícias sobre as reuniões. Kennedy assumira a presidência havia menos de seis meses, e a maioria dos especialistas considerava um erro crasso negociar com Kruschev assim tão cedo, pois o primeiro-ministro era duro, articulado e tremendamente astuto. Nós, crianças, não tínhamos opinião sobre o assunto e, de toda forma, como o televisor ficava dentro da loja, não podíamos escutar o som. Mas podíamos ver! Nós fazíamos parte da ação.
Estávamos vivendo uma situação assustadora. Toda vez que Rússia e Estados Unidos discordavam sobre alguma coisa, nós nos sentíamos condenados. Como a Áustria ficava bem no meio dos dois, achávamos que Kruschev fosse fazer algo terrível com nosso país, e fora justamente por esse motivo que a cúpula tinha sido organizada em Viena. O encontro não correu nada bem. Em determinado momento, depois de fazer uma exigência hostil, Kruschev disse: “Cabe aos Estados Unidos decidir se haverá guerra ou paz”, e a resposta de Kennedy foi ameaçadora: “Neste caso, Sr. Primeiro-Secretário, haverá guerra. Temos um frio e longo inverno pela frente.” Naquele outono, quando Kruschev ergueu o Muro em Berlim, podia-se ouvir os adultos comentando entre si: “Pronto, é isso.” Na época a Gendarmerie era a coisa mais próxima de um exército na Áustria, e meu pai teve que ir para a fronteira, de uniforme militar, levando todo o seu equipamento. Passou uma semana fora de casa até a crise se acalmar.
ENQUANTO ISSO, HAVIA MUITA TENSÃO E várias simulações de emergência. Minha turma de cerca de 30 meninos adolescentes tinha testosterona saindo pelo ladrão, mas ninguém queria uma guerra. Estávamos mais interessados em meninas. Elas eram um mistério, ainda mais para meninos como eu, que não tinham irmã, e a única hora em que as víamos na escola era antes de as aulas começarem, no pátio, porque elas ficavam em uma ala reservada do prédio. Eram as mesmas meninas com as quais tínhamos sido criados a vida inteira, mas de repente pareciam extraterrestres. Como conversar com elas? Havíamos acabado de chegar à fase de sentir atração sexual, mas esta se manifestava de maneiras estranhas – como na manhã em que montamos uma tocaia para bombardear as garotas com bolas de neve no pátio antes da aula.
Nossa primeira aula do dia era de matemática. Em vez de abrir o livro, o professor disse: “Eu vi o que vocês fizeram lá fora. É melhor conversarmos sobre isso.”
Ficamos com medo de levar uma tremenda bronca – aquele professor era o mesmo que tinha quebrado os dentes da frente do meu amigo. Nesse dia, porém, ele adotou uma abordagem não violenta. “Vocês querem que aquelas meninas gostem de vocês, não é?” Alguns de nós fizeram que sim com a cabeça. “É natural quererem isso, porque nós amamos o sexo oposto. Daqui a algum tempo, vocês vão querer beijá-las, abraçá-las e fazer amor com elas. Não é isso que todo mundo aqui quer fazer?” Mais alunos aquiesceram. “Então não venham me dizer que faz sentido jogar bolas de neve na cara de uma menina! Isso lá é jeito de expressar o seu amor? É assim que se diz ‘Eu gosto muito de você’? Onde vocês foram arranjar essa ideia?” Desse modo ele realmente conseguiu prender nossa atenção. “Quando eu penso nas primeiras vezes que me aproximei das garotas, lembro que as elogiava e beijava, depois as abraçava e as fazia se sentirem bem. Era isso que eu fazia.”
Muitos de nossos pais nunca tinham tido essa conversa conosco. Percebemos que, se quiséssemos uma garota, seria preciso fazer um esforço para travar uma conversa normal, não apenas ficar babando como um cão excitado. E seria necessário criar um nível de conforto. Eu também tinha atirado bolas de neve. Então ouvi atentamente essas dicas e as guardei com cuidado.