— Sim, mas por quê?
— Boa pergunta. Imagino, meu caro amigo, se não seria por causa de Bliss.
— Bliss? Está querendo dizer que não confia em Bliss? É absurdo!
— Não é isso. De que adiantaria desconfiar de Bliss? Acho que ela seria capaz de arrancar qualquer informação de dentro da minha cabeça, se quisesse. Não, meus motivos são mais infantis. Tenho a sensação de que você só tem olhos para Bliss, de que nem se lembra mais de que eu existo.
— Isso não é verdade, Golan.
— Eu sei, mas estou tentando analisar meus próprios sentimentos. Há pouco você manifestou dúvidas a respeito da nossa amizade. Pensando bem, acho que tenho sentido os mesmos temores. Até agora não havia admitido para mim mesmo, mas sinto ciúmes de Bliss. Talvez tenha procurado “vingar-me” ocultando coisas de você. Que infantilidade, não?
— Golan!
— Eu disse que era infantilidade, não disse? Quem não é infantil uma vez ou outra? O que importa é que nós somos amigos. Vamos dar o assunto por encerrado e falar de coisas mais agradáveis. Nosso destino é Comporellon.
— Comporellon?
— Você deve se lembrar do meu amigo, o traidor Munn Li Compor. Nós três nos encontramos em Sayshell.
De repente, uma luz apareceu nos olhos de Pelorat.
— Ah, agora me lembro! Comporellon era o planeta onde nasceram os ancestrais desse seu amigo.
— Onde ele disse que nasceram. Tenho razões de sobra para não confiar em Compor. Entretanto, Comporellon é um planeta conhecido e, segundo Compor, seus habitantes sabem muita coisa a respeito da Terra. Pois então vamos até lá investigar. Pode não dar em nada, mas é a única pista que temos.
Pelorat não parecia convencido.
— Meu amigo, tem certeza de que é uma boa ideia?
— Não tenho certeza de nada. Estou apenas seguindo um palpite, na falta de coisa melhor.
— Sim, mas se está disposto a acreditar nas informações de Compor, talvez seja melhor levar em conta tudo o que ele disse. Lembro-me de que ele afirmou, com toda a segurança, que a Terra era um planeta morto, que sua superfície estava radioativa... Nesse caso, nossa viagem a Comporellon será perda de tempo.
8
Os três estavam almoçando na sala de jantar, que havia ficado literalmente lotada.
— Está uma delícia! — exclamou Pelorat, satisfeito. — É parte dos suprimentos originais que trouxemos de Terminus?
— Não é não — respondeu Trevize. — Os suprimentos originais já acabaram há muito tempo. Esta comida foi comprada em Sayshell, antes de viajarmos para Gaia. Exótica, não é? Parece peixe, mas é cro-cante. E essa verdura? Quando comprei, pensei que fosse repolho, mas tem um gosto totalmente diferente.
Bliss permanecia calada, remexendo a comida no prato.
— Querida, você precisa comer — disse Pelorat, carinhosamente.
— Eu sei, Pel, e estou comendo.
Trevize interveio, com um toque de impaciência que não conseguiu disfarçar:
— Também temos comida de Gaia, Bliss.
— Eu sei, mas prefiro não consumi-la agora. Não sabemos quanto tempo vamos ficar no espaço e mais cedo ou mais tarde terei que me acostumar com a comida dos Isolados.
— Isso é tão ruim? Será que Gaia só deve comer Gaia? Bliss suspirou.
— Na verdade, temos um ditado que diz: “Quando Gaia come Gaia, ninguém sai ganhando nem perdendo”. Tudo não passa de uma mudança de forma. Tudo o que como quando estou em Gaia também é Gaia e continua a ser Gaia depois de ser metabolizado e tornar-se parte de mim. Ao comer, proporciono ao alimento a oportunidade de atingir um nível mais elevado de consciência, embora, naturalmente, parte desse alimento seja transformada em refugo e portanto seja relegada a níveis inferiores de consciência.
A jovem colocou um pedaço de comida na boca, mastigou vigorosamente, engoliu e disse:
— Em Gaia, tudo circula. As plantas crescem e são comidas por animais. Os animais comem e são comidos. Os organismos que morrem servem de alimento para os fungos e bactérias... sem em nenhum momento deixarem de ser Gaia. Nessa vasta circulação de consciência, da qual todos os seres, até mesmo os inorgânicos, necessariamente participam, todos têm ocasião de atingir, periodicamente, níveis elevados de consciência.
— O mesmo se poderia dizer de qualquer planeta — protestou Trevize. — Cada átomo de meu corpo tem uma longa história, durante a qual pode ter sido parte de muitos seres vivos, incluindo seres humanos, e durante a qual também pode ter passado longos períodos como parte do mar, ou em um pedaço de carvão, ou em uma pedra, ou como parte da atmosfera...
— Em Gaia, porém — disse Bliss —, todos os átomos fazem parte de uma consciência planetária. Esta é a grande diferença entre o meu planeta e o de vocês.
— O que acontece, então, com essas verduras de Sayshell que você está comendo? — quis saber Trevize. — Será que também se tornam parte de Gaia?
— Sim, mas muito devagar. E os refugos que elimino deixam aos poucos de fazer parte de Gaia. Afinal, tudo o que sai do meu corpo perde contato com Gaia, pois apenas os seres com alto nível de consciência, como eu, podem se manter unidos a Gaia através do hiperespaço. É esse contato hiperespacial que faz com que os alimentos de outros planetas se tornem parte de Gaia quando são assimilados pelo meu organismo.
— E a comida de Gaia em nossa despensa? Deixará também aos poucos de ser Gaia? Nesse caso, é melhor comê-la já.
— Não se preocupe com isso. A comida que trouxemos de Gaia foi tratada de modo a continuar a ser Gaia por um longo tempo.
— Que acontecerá se nós comermos a comida de Gaia? — perguntou Pelorat. — Ou por outra: o que aconteceu quando comemos a comida de vocês quando estávamos em Gaia? Será que estamos nos transformando lentamente em Gaia?
Bliss sacudiu a cabeça e seu rosto assumiu uma expressão triste.
— Não, o que vocês comeram foi perdido para nós. Pelo menos, a parte que foi metabolizada e incorporada ao organismo de vocês. Os rejeitos continuaram a ser Gaia ou aos poucos voltaram a ser Gaia, mas, em consequência da sua visita, Gaia perdeu muitos átomos.
— Por que isso? — quis saber Trevize.
— Porque vocês não resistiriam à conversão, mesmo que parcial. Eram nossos hóspedes, trazidos ao nosso planeta praticamente contra a vontade, de modo que nos sentíamos na obrigação de protegê-los, mesmo à custa de perdermos alguns fragmentos de Gaia. Foi uma decisão consciente, embora penosa.
— Sentimos muito — disse Trevize. — Tem certeza de que a comida de outros planetas, ou pelo menos algum tipo de comida de outros planetas, não pode fazer mal a você!
— Tenho — afimou Bliss. — O que é comestível para vocês é comestível para mim. A única diferença é que além de metabolizar o alimento, tenho também que transformá-lo em Gaia. Isso representa uma barreira psicológica que me tira o gosto pela comida e me faz comer devagar, mas acho que acabarei por me acostumar.
— E as infecções? — perguntou Pelorat, assustado. — Bliss, não sei como não pensei nisso antes! Em qualquer planeta em que pousarmos haverá micro-organismos contra os quais você não terá nenhuma defesa! Qualquer infecção banal poderá matá-la! Trevize, temos que voltar.
— Não se preocupe, Pel querido — disse Bliss, sorrindo. — Os micro-organismos também se transformam em Gaia quando são ingeridos junto com o alimento ou entram no meu corpo de outra forma qualquer. Se se trata de organismos patogênicos, a conversão é acelerada, e depois que passam a ser Gaia, tornam-se inofensivos.