”O problema é que Pelorat tem uma esposa em Terminus. Eu sou livre, você entende, mas Pelorat, não. E ele chegou a uma idade em que os homens ficam... como direi?... em que os homens ficam obcecados por mulheres mais jovens. Não quer largar Bliss de jeito nenhum. Ao mesmo tempo, se a presença de Bliss for conhecida oficialmente, o velho Pelorat vai comer o pão que o diabo amassou quando voltar a Terminus.
”Ninguém será prejudicado, entende? Bliss não tem nada a ver com a nossa missão. Qual a necessidade de mencioná-la? Não pode registrar apenas o meu nome e o do dr. Pelorat? Éramos os únicos a bordo quando nossa nave partiu de Terminus. Para que mencionar a moça? Afinal de contas, ela está absolutamente livre de doenças. Você pôde constatar isso pessoalmente!
Kendray franziu a testa.
— Conselheiro, compreendo sua situação e, acredite, gostaria de ajudá-lo. Se pensa que é divertido ficar de serviço nesta estação meses a fio, está muito enganado. E aqui em cima só trabalham homens... — Sacudiu a cabeça. — Além disso, sou casado, de modo que entendo a enrascada em que o seu amigo se meteu... mas escute, mesmo que eu deixe vocês passarem, assim que descobrirem que a... que a amiguinha de vocês não tem documentos, ela vai para a cadeia, eu perco o emprego e o senhor e seu amigo vão ter muito o que explicar para as autoridades de Comporellon e de Terminus!
— Sr. Kendray, tem que confiar em mim. Assim que pousarmos em Comporellon, tudo estará bem. As pessoas que estão à minha espera são muito influentes. Se for necessário, o que acho muito pouco provável, assumirei total responsabilidade pelo que aconteceu aqui. Além do mais, recomendarei a sua promoção...
Kendray hesitou por um momento e depois disse:
— Está bem. Vou deixar a moça passar, mas fique sabendo de uma coisa: a partir deste momento, estarei planejando uma forma de livrar a cara se alguma coisa der errado. E não moverei um dedo para ajudar vocês. Acontece que eu sei como as coisas funcionam em Comporellon, vocês não sabem e este não é um lugar fácil para as pessoas que saem da linha.
— Muito obrigado, sr. Kendray — disse Trevize. — Não haverá nenhum problema. Pode ficar tranquilo.
Capítulo 4
Em Comporellon
13
Começaram a descida. A estação espacial havia ficado para trás, reduzida a um ponto luminoso. Em poucas horas, estariam atravessando a camada de nuvens.
Uma nave gravítica não precisava descer em espiral para frear, mas também não podia mergulhar depressa demais em direção à superfície. O fato de poder neutralizar a força gravitacional não a tornava imune à resistência do ar. A nave podia descer em linha reta, mas se não tomasse cuidado com a velocidade, arderia em chamas.
— Para onde estamos indo? — perguntou Pelorat, parecendo confuso. — Daqui de cima, tudo parece igual, meu amigo.
— Para mim também — disse Trevize. — Acontece que dispomos de um mapa holográfico oficial de Comporellon, com todos os continentes e oceanos... e também com as divisões políticas. O mapa está na memória do computador, que se encarregará de todo o trabalho. Depois de determinar a nossa posição no mapa, nos guiará direta-mente para a capital.
— Não acha arriscado irmos para a capital? Se o ambiente aqui é hostil à Federação, como aquele sujeito insinuou, na capital será ainda pior...
— Por outro lado, a capital deve ser o centro intelectual do planeta e portanto o melhor lugar para conseguirmos a informação que buscamos. Mesmo que eles não gostem da Fundação, duvido que telham coragem de expressar este sentimento abertamente. Bliss saiu do lavatório ajeitando a roupa e disse:
— Estava pensando... nesta nave todos os excrementos são reciclados?
— Não temos escolha — disse Trevize. — Quanto tempo você acha que duraria nosso suprimento de água se não reciclássemos a urina? Como acha que conseguimos nutrientes para as plantas que cultivamos a bordo? Espero que isso não estrague o seu apetite, minha eficiente Bliss.
— Por que estragaria? De onde você supõe que vem a água e a comida em Gaia, neste planeta em que estamos ou em Terminus?
— Em Gaia, os excrementos estão vivos, não estão?
— Vivos, não. Conscientes. Naturalmente, seu nível de consciência é extremamente baixo quando comparado com o nosso.
Trevize fez uma careta de desagrado, mas não insistiu no assunto. Disse:
— Vou para a sala de comando fazer companhia ao computador. Não que ele precise de mim...
— Podemos ir juntos? — perguntou Pelorat. — Ainda não me acostumei à ideia de que ele é capaz de cuidar da nave sem a nossa ajuda; de reconhecer outras naves, de evitar tempestades, de... de?
— Pois é bom ir se acostumando — disse Trevize, com um largo sorriso. — Estamos muito mais seguros com o computador nos controles do que se eu assumisse o comando... mas claro, claro, venham. Vão achar interessante.
Estavam sobrevoando o lado iluminado do planeta porque, explicou Trevize, naquele lado o computador podia identificar mais facilmente os acidentes geográficos, comparando-os com os do mapa que estava armazenado na sua memória.
— Isso é evidente — disse Pelorat.
— Nem tanto. O computador também “enxerga” no infravermelho, e portanto poderia também reconhecer os acidentes da face escura. Ocorre, porém, que as ondas infravermelhas têm comprimento maior que as de luz visível e por isso não permitem uma resolução tão boa. Em outras palavras, o computador “vê” um pouco melhor no lado claro. E sempre que posso, gosto de tornar as coisas fáceis para ele...
— E se a capital estiver no lado escuro?
— Depois que o computador descobrir nossa localização no lado iluminado, poderá levar-nos direto para a capital, mesmo que ela este ja do outro lado do planeta. Além disso, muito antes de chegarn ao nosso destino, estaremos recebendo transmissões de microondas q| nos guiarão para o espaçoporto mais conveniente. Assim, não há razão para nos preocuparmos.
— Tem certeza? — perguntou Bliss. — Estou chegando sem ne-nhuma identificação e impedida, por razões óbvias, de revelar mini origem. Que vou fazer, se pedirem meus documentos?
— Isso não vai acontecer — disse Trevize. — Todos vão pensar que seus documentos já foram examinados na estação espacial.
— Mas e se pedirem?
— Nesse caso, enfrentaremos o problema quando ele surgir. Não vamos nos preocupar com hipóteses remotas.
— Se deixarmos para resolver o problema quando ele surgir, po-dera ser tarde demais.
— Estou contando com a minha presença de espírito.
— Por falar em presença de espírito, como fez para convencer aquele homem da estação espacial?
Trevize olhou para Bliss e deixou os lábios se expandirem devagar em um sorriso que o deixou parecido com um moleque levado.
— Usei a cabeça, ora! Pelorat insistiu:
— Conte para nós, vamos!
— Custei para achar uma forma de sensibilizar o cara. Tentei intimidá-lo e nada. Suborno, nem pensar. Apelei para a lógica, para lealdade à Fundação. Nada estava dando certo, de modo que use um recurso extremo. Disse para ele você estava traindo sua esposa Pelorat.
— Minha esposa! Meu amigo, no momento eu nem estou casado.
— Eu sei disso, mas ele, não. Bliss interrompeu:
— “Esposa” deve ser o nome que vocês dão à companheira legal habitual de um homem.
— É um pouco mais que isso, Bliss — disse Trevize. — Esposa é a companheira legal, aquela que tem direitos jurídicos reconhecidos.