— Bliss, eu não tenho uma esposa — disse Pelorat, nervoso. — Já tive no passado, mas faz muito tempo... se você quisesse passar pe-las formalidades...
— Pel, Pel — disse Bliss, com um gesto de desdém —, por que eu faria uma coisa dessas? Tenho muitos companheiros que estão mais próximos de mim do que o seu braço direito do braço esquerdo. Só os Isolados se sentem alienados a ponto de terem que usar convenções artificiais como um pálido substituto para o verdadeiro companheirismo!
— Mas eu sou um Isolado, Bliss querida.
— Com o tempo, você será menos Isolado, Pel. Nunca chegará a fazer parte de Gaia, provavelmente, mas pelo menos terá muitos companheiros.
— Só quero você, Bliss.
— Isso é porque ainda não sabe de nada. Você vai ver! Durante toda a conversa, Trevize estava tentando se concentrar na tela, com uma expressão de tolerância no rosto. Tinham chegado à camada de nuvens e por um momento a tela ficou toda branca.
Hora de mudar para os detectores de microondas, pensou, ao mesmo tempo em que o computador começava a mostrar na tela os ecos de radar. As nuvens desapareceram e a superfície de Comporellon apareceu em cores falsas, os limites entre terrenos de diferente composição, um pouco difusos e trêmulos.
— É assim que vai ficar daqui para a frente? — perguntou Bliss, surpresa.
— Só até atravessarmos as nuvens. Depois, tudo volta à ser como antes.
Enquanto Trevize falava, a nave saiu das nuvens e a visibilidade voltou ao normal.
— Entendo — disse Bliss. — O que não entendo é que diferença pode fazer para o funcionário da estação espacial o fato de Pel estar (ruindo a esposa.
— O que eu disse para aquele tal de Kendray foi que se não deixasse você passar, a notícia a respeito da sua presença a bordo poderia chegar a Terminus e consequentemente à esposa de Pelorat. Isso, por sua vez, colocaria Pelorat em sérias dificuldades. Não expliquei que tipo de dificuldades, mas procurei dar a impressão de que seria algo bem desagradável. Existe uma espécie de solidariedade masculina — prosseguiu Trevize, com um sorriso — que faz com que um homem jamais revele as aventuras sexuais de outro homem. Talvez o raciocínio por trás disso seja de que quem ajuda hoje pode precisar de ajuda amanhã. Suponho que exista uma solidariedade semelhante entre as mulheres — prosseguiu, em tom um pouco mais sério —, embora, não sendo mulher, nunca tenha tido a oportunidade de observá-la de perto.
Bliss parecia horrorizada.
— Está brincando comigo? — perguntou.
— Não, estou falando sério — disse Trevize. — Não digo que o tal do Kendray tenha deixado você passar só para evitar que a esposa de Janov ficasse zangada com ele. Não, a solidariedade masculina deve ter sido apenas o pequeno reforço que faltava aos meus outros argumentos.
— Mas isso é incrível! São os regulamentos que mantêm a sociedade coesa e funcionando. Acha correto desrespeitar os regulamentos por razões fúteis?
— Ora, os próprios regulamentos às vezes são ridículos! — exclamou Trevize, tomando a defensiva. — Poucos mundos dão muita importância à passagem de estrangeiros por seu território, especialmente em períodos de paz e prosperidade, como o que estamos atravessando agora, graças à Fundação. Comporellon, por algum motivo, não segue a regra... provavelmente por causa de uma questão obscura de política interna. Por que devemos ser nós os prejudicados?
— Isso não vem ao caso. Se obedecermos apenas às leis que consideramos justas e razoáveis, nenhuma lei sobreviverá muito tempo, porque não existe nenhuma lei que alguém não considere injusta e pouco razoável. Assim, o que começa como uma pequena esperteza acaba sempre em anarquia e desastre, até mesmo para o esperto, já que ele também não consegue sobreviver ao colapso da sociedade.
— As sociedades não são tão frágeis assim. Você está falando como Gaia, e Gaia não pode compreender o que é uma associação de indivíduos livres. Muitas leis que eram justas e razoáveis quando foram criadas deixam de acompanhar a evolução da sociedade e continuam em vigor apenas por causa de inércia. Nesse caso, não é apenas desculpável, é eticamente correto desrespeitar essas leis como forma de anunciar o fato de que se tornaram inúteis, ou pior ainda, nocivas à sociedade.
— Nesse caso, até o ladrão e o assassino poderiam argumentar que estão sendo úteis à humanidade!
— Você está exagerando. No superorganismo de Gaia, existe um consenso automático quanto às regras a serem seguidas, de modo que não ocorre a ninguém a ideia de violá-las. É como se Gaia estivesse fossilizado. É claro que existe um elemento de desordem na associação livre, mas é o preço que temos que pagar pela capacidade de introduzir novidades e mudanças. No conjunto, não acho que seja um preço muito alto.
O tom de voz de Bliss ficou ligeiramente mais agudo.
— Você está muito enganado se pensa que Gaia estagnou. Nossos planos, nossos costumes, nossas leis estão sendo constantemente reexaminados. Não persistem por pura inércia. Gaia aprende através da experiência e da lógica e muda sempre que considera isso necessário.
— Ainda que seja verdade, o aprendizado deve ser lento e as mu-ilnças raras, porque em Gaia não existe nada além de Gaia. Aqui, como em todos os planetas livres, mesmo quando quase todos concordam, existem sempre uns poucos que discordam. Em alguns casos, esses poucos podem estar certos, e se eles forem muito espertos, muito persis-lentes e estiverem muito certos, conseguirão vencer a maioria e serão considerados como heróis pelas gerações futuras... como Hari Seldon, que aperfeiçoou a psico-história, desafiou com suas ideias o gigantesco Império Galáctico... e ganhou!
— Não sei como pode dizer que ele ganhou, Trevize. O Segundo Império planejado por Seldon jamais se tornará uma realidade. Em seu lugar, surgirá a Galáxia Viva.
— Tem certeza? — perguntou Trevize, de cara feia.
— A decisão foi sua, e por mais que discuta comigo a favor dos Isolados e da liberdade de que dispõem para cometer crimes e fazer tolices, existe alguma coisa nos recônditos da sua mente que o obrigou I concordar comigo/conosco/com Gaia quando tomou a sua decisão.
— O que está presente nos recônditos de minha mente — disse Trevize, num tom ainda mais desanimado — é exatamente o que estou procurando. A começar por aqui — acrescentou, apontando para a tela, onde uma grande cidade se esparramava até o horizonte, um aglomerado de construções baixas com um ou outro edifício mais alto, cercado por campos de cor castanha cobertos por uma fina camada de gelo.
Pelorat sacudiu a cabeça.
— Que pena! Pretendia apreciar a descida, mas fiquei distraído ouvindo a discussão de vocês...
— Não tem importância, Janov — disse Trevize. — A vista será a mesma quando partirmos. Se você fizer Bliss ficar quieta, prometo que não direi uma palavra.
Pouco depois, o Estrela Distante se aproximava do espaçoporto da cidade, guiado por uma transmissão de microondas.
14
Kendray estava de cara amarrada quando voltou à estação espacial e observou o Estrela Distante desaparecer ao longe. Seu humor não melhorou até o final do expediente.
Estava se preparando para começar a última refeição do dia quando um dos colegas, um sujeito grandalhão, de olhos vivos, cabelos claros e lisos e sobrancelhas tão louras que eram quase invisíveis, sentou-se na cadeira ao lado.
— Que foi que houve, Ken? — perguntou o outro. Kendray fez uma careta e respondeu: