— Assim sendo — disse Trevize —, se Gaia foi fundada nos primórdios das viagens hiperespaciais, é provável que tenha sido colonizada por terráqueos, ou pelo menos por nativos de um planeta recentemente colonizado pelos terráqueos. Nesse caso, é evidente que os registros da colonização de Gaia e dos primeiros milênios em que o planeta foi habitado teriam que conter referências à Terra e aos terráqueos. Acontece que esses registros desapareceram. Alguém parece estar ativamente empenhado em destruir todas as referências à Terra existentes na Galáxia. Se isso é verdade, deve haver uma razão muito forte.
Bliss protestou, indignada:
— Tudo isso não passa de conjecturas, Trevize. Você não tem nenhuma prova!
— É Gaia que insiste em que possuo o talento especial de chegar a conclusões corretas com base em provas insuficientes. Assim, quando eu chego a uma conclusão, não me diga que faltam as provas!
Bliss ficou calada. Trevize prosseguiu:
— Você agora entende por que eu tenho que encontrar a Terra. Pretendo partir assim que o Estrela Distante estiver pronto. Vocês dois ainda querem ir comigo?
— Queremos — disseram Bliss e Pelorat ao mesmo tempo.
Capítulo 2
Viajando para Comporellon
5
Estava chuviscando. Trevize olhou para o céu cinzento. Usava um guarda-chuva que repelia as gotas, arremessando-as para longe em todas as direções. Pelorat, que não dispunha de uma proteção semelhante, rnantinha-se a uma distância prudente.
— Não vejo razão para você se molhar, Janov — disse Trevize.
— A chuva não me incomoda, amigo — disse Pelorat, com o ar solene de sempre. — É uma chuva fraca e morna. Não está ventando. Além disso, como diz o velho provérbio, “Quando estiver em Anacreon, faça como os anacreonitas”.
Apontou para alguns gaianos que se haviam reunido em torno do Estrela Distante e os observavam em silêncio. Estavam bem espalhados, como se fossem árvores em um bosque, e nenhum deles usava guarda-chuva.
— Tenho a impressão de que eles não se incomodam de se molhar porque o resto de Gaia está ficando molhado — disse Trevize. — As árvores, a grama, a terra — tudo está molhado, e tudo é parte de Gaia, como os gaianos.
— Acho que faz sentido — disse Pelorat. — Daqui a pouco o sol vai sair e secar tudo num instante. As roupas não vão encolher, não está fazendo frio e como este planeta não tem micro-organismos patogênicos, ninguém vai pegar resfriado, gripe ou pneumonia. Então qual o problema de tomar um pouco de chuva?
Trevize podia compreender perfeitamente a lógica do argumento, mas não queria dar o braço a torcer.
— Mesmo assim, não precisava chover justo na hora em que estamos de partida. Afinal, a chuva neste planeta é voluntária. Gaia não choveria se não quisesse. É como se estivesse querendo mostrar que não tem nenhuma consideração conosco.
— Talvez Gaia esteja chorando de tristeza porque vamos embora — disse Pelorat.
— Pode ser, mas eu não — disse Trevize.
— Na verdade — prosseguiu Pelorat —, provavelmente o solo nesta região esteja precisando de umidade, e essa necessidade é mais importante que o seu desejo de ver o sol brilhar.
Trevize sorriu.
— Você gosta mesmo deste planeta, não é? Quero dizer, mesmo sem pensar em Bliss.
— Gosto, sim — afirmou Pelorat, em tom quase desafiador. — Sempre levei uma vida simples e ordeira, e acho que me daria muito bem aqui, onde o mundo inteiro trabalha para manter a vida simples e ordeira. Afinal, Golan, quando construímos uma casa, ou mesmo essa espaçonave que aí está, tentamos criar um abrigo perfeito. Procuramos equipar esse abrigo com tudo o que achamos que poderá ser necessário. Instalamos controles de temperatura, atmosfera, iluminação e tudo mais, de modo a podermos tornar o ambiente o mais confortável possível. Gaia é uma extensão desse desejo de conforto e segurança: um planeta inteiro zelando por seus habitantes. Que há de errado nisso?
— O que há de errado nisso — disse Trevize — é que a minha casa e a minha nave foram construídas para atender a minhas necessidades. Eu não preciso me adaptar a elas. Se eu fosse parte de Gaia, então, por melhor que o planeta me atendesse, eu não deixaria de me aborrecer com o fato de que também estaria sendo obrigado a atendê-lo.
Pelorat franziu a testa.
— Na verdade, toda sociedade molda a população de acordo com seus próprios valores. Surgem novos costumes, novas leis, que se encarregam de manter todos os membros dentro de determinados padrões de comportamento.
— Nas sociedades que eu conheço, os indivíduos podem se rebelar. Sempre existem os excêntricos, os criminosos...
— Você aprova os excêntricos e criminosos?
— Por que não? Eu e você somos excêntricos. Certamente não somos exemplos típicos dos habitantes de Terminus. Quanto aos criminosos, isso é uma questão de definição. Além disso, se os criminosos são o preço que temos que pagar para termos rebeldes, hereges e gênios, estou disposto a pagar o preço. Eu exijo que o preço seja pago.
— Os criminosos são o único pagamento possível? Não podemos ter gênios sem termos criminosos?
— Não podemos ter gênios e santos sem termos pessoas que fujam bastante da norma geral, e não vejo como os desvios em relação à norma possam ser apenas para o lado positivo. Tem que haver certa simetria. De qualquer forma, quero um motivo melhor para a minha decisão de fazer de Gaia um modelo para o futuro da Humanidade do que o fato de que é uma versão planetária de uma casa confortável.
— Meu amigo, não estava de forma alguma tentando convencê-lo a conformar-se com a sua decisão. Estava apenas fazendo um comen...
Interrompeu o que estava dizendo. Bliss aproximava-se a passos largos, o cabelo molhado, o vestido colado ao corpo, realçando os quadris generosos.
— Desculpe o atraso — disse a moça, um pouquinho ofegante. — Minha conversa com Dom levou mais tempo do que eu havia previsto.
— Não sei por quê — disse Trevize. — Afinal, você sabe tudo o que ele sabe.
— Às vezes não interpretamos os fatos da mesma forma. Afinal, não somos idênticos. Escute aqui — disse, com um traço de impaciência na voz —, você tem duas mãos. Ambas são parte de você e parecem idênticas, a não ser pelo fato de uma ser a imagem espelhada da outra. Mesmo assim, você não as usa da mesma forma, usa? Existem algumas coisas que você faz com a mão direita, outras que faz com a mão esquerda. Diferenças de interpretação, em última análise.
— Ela está certa — disse Pelorat, com visível satisfação. Trevize assentiu.
— É uma excelente analogia. Agora podemos subir a bordo? Está chovendo.
— Sim, sim. A nave está pronta para a viagem.
A moça olhou para Trevize e acrescentou, curiosa:
— Você está seco. Está se protegendo da chuva?
— Isso mesmo — disse Trevize. — Não quero me molhar.
— Não acha agradável sentir o corpo molhado de vez em quando? - Acho, sim. Mas quem escolhe a hora sou eu, e não a chuva. Bliss deu de ombros.
— Como quiser. Nossa bagagem já está a bordo. Vamos?
Os três caminharam em direção ao Estrela Distante. A chuva tinha quase parado, mas a grama estava bastante molhada. Trevize andava com cuidado, quase nas pontas dos pés, mas Bliss, que havia tirado as sandálias, pisava na grama com os pés descalços, praticamente sem levantá-los do chão.