Continuei fiel à minha religião, e acho que, apesar de todos os seus erros, está sinceramente se esforçando para corrigir-se.
Isso levará décadas, talvez séculos, mas um dia tudo que será levado em conta é o amor, a frase de Cristo: “vinde a mim os agoniados, e eu os aliviarei”. Dediquei minha vida inteira ao sacerdócio, e não me arrependo um segundo da minha decisão. Mas em momentos como o que ocorreu naquele domingo, embora não duvidasse da fé, passei a duvidar dos homens.
Sei agora o que aconteceu com Athena, e me pergunto; será que tudo começou ali, ou já estava na sua alma? Penso nas muitas Athenas e Lukás do mundo, que se divorciaram, e por causa disso já não podem receber o sacramento da Eucaristia, resta-lhes apenas contemplar o Cristo sofredor e crucificado, e escutar Suas palavras — que nem sempre estão de acordo com as leis do Vaticano. Em uns poucos casos estas pessoas se afastam, mas a maioria continua vindo à missa dos domingos, porque estão habituados com isso, mesmo conscientes que o milagre da transmutação do pão e do vinho na carne e no sangue do Senhor lhes é proibida.
Penso que, ao sair da igreja, Athena pode ter encontrado Jesus. E, chorando, se atirou em seus braços, confusa, pedindo que lhe explicasse por que estava sendo obrigada a ficar do lado de fora só por causa de um papel assinado, uma coisa sem a menor importância no plano espiritual, e que só interessava mesmo a cartórios e imposto de renda.
E Jesus, olhando para Athena, possivelmente teria respondido:
— Veja bem, minha filha, também estou do lado de fora.
Há muito tempo eles não me deixam entrar ali.
Pavel Podbieslki, 57 anos, proprietário do apartamento 190
Eu e Athena tínhamos uma coisa em comum: éramos ambos exilados de guerras, chegamos à Inglaterra ainda crianças, embora minha fuga da Polônia tenha acontecido há mais de cinqüenta anos.
Nós dois sabíamos que, embora sempre haja uma mudança física, as tradições permanecem no exílio — as comunidades tornam a se reunir, a língua e a religião continuam vivas, as pessoas tendem a se proteger umas às outras no ambiente que será para sempre estrangeiro.
Da mesma maneira que as tradições permanecem, o desejo de voltar vai sumindo. Ele precisa permanecer vivo em nossos corações, uma esperança com a qual gostamos de nos enganar — mas que nunca será colocada em prática; eu jamais tornarei a viver em Czestochowa, ela e sua família jamais retornariam a Beirute.
Foi este tipo de solidariedade que me fez alugar o terceiro andar de minha casa em Basset Road — caso contrário, eu teria preferido inquilinos que não tivessem crianças. Já havia cometido este erro antes, e duas coisas aconteciam: eu me queixava do barulho que eles faziam durante o dia, e eles se queixavam do barulho que eu fazia durante a noite. Ambos tinham suas raízes em elementos sagrados — o choro e a música —, mas, como pertenciam a dois mundos completamente diferentes, era difícil que um tolerasse o outro.
Avisei-a, mas ela não ligou, e disse que ficasse tranqüilo quanto ao seu filho: ele passava o dia inteiro na casa da avó. E o apartamento tinha a conveniência de ser perto de seu trabalho, um banco nas redondezas.
Apesar dos meus avisos, apesar de ter resistido bravamente no inicio, oito dias depois a campainha de minha porta tocou. Era ela, com o menino nos braços:
— Meu filho não consegue dormir. Será que apenas hoje não dá para abaixar a música...
Todos na sala a olharam.
— O que é isso?
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O menino em seu colo parou imediatamente de chorar, como se estivesse tão surpreso como a mãe ao ver aquele grupo de gente, que subitamente parara de dançar.
Apertei o botão que dava uma pausa na fita cassete, acenei com uma das mãos para que entrasse, e logo destravei de novo o aparelho de som, de modo a não perturbar o ritual. Athena sentou-se em um dos cantos da sala, embalando o bebê em seus braços, vendo que ele dormia com facilidade apesar do ruído do tambor e dos metais. Assistiu a toda a cerimônia, saiu quando os outros convidados também saíram e — como eu podia imaginar —
tocou a campainha de minha casa na manhã seguinte, antes de ir para o trabalho.
— Não precisa me explicar o que vi: gente dançando de olhos fechados, e sei o que isso significa, porque muitas vezes faço a mesma coisa, são os únicos momentos de paz e de serenidade na minha vida. Antes de ser mãe, freqüentava boates com meu marido e meus amigos; ali também via gente na pista de dança com os olhos fechados, algumas apenas para impressionar os outros, outras como se fossem movidas por uma força maior, mais poderosa.
E, desde que me entendo por gente, encontrei na dança uma maneira de conectar-me com algo mais forte, mais poderoso que eu. Mas queria saber que música é essa.
— O que vai fazer neste domingo?
— Nada de especial. Passear com Viorel no Regent’s Park, respirar um pouco de ar puro. Terei muito tempo para minha própria agenda — neste momento de minha vida, escolhi seguir a agenda do meu filho.
— Pois irei com você.
Nos dois dias antes de nosso passeio, Athena vinha assistir ao ritual. O filho dormia depois de alguns minutos, e ela apenas olhava, sem dizer nada, o movimento ao redor. Embora permanecesse imóvel no sofá, tinha certeza que sua alma estava dançando.
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Na tarde de domingo, enquanto passeávamos no parque, pedi que prestasse atenção a tudo que estava vendo e ouvindo: as folhas que balançavam ao vento, as ondas na água do lago, os pássaros cantando, os cães latindo, os gritos de crianças que corriam de um lado para o outro, como se obedecessem a uma estranha lógica, incompreensível para os adultos.
— Tudo se move. E tudo se move com um ritmo. E tudo que se move com um ritmo provoca um som; isso está acontecendo aqui e em qualquer lugar do mundo neste momento. Nossos ancestrais notaram a mesma coisa, quando procuravam fugir do frio em suas cavernas: as coisas se moviam e faziam barulho.
“Os primeiros seres humanos talvez tivessem olhado isso com espanto, e logo em seguida com devoção: entenderam que esta era a maneira de uma Entidade Superior comunicar-se com eles. Passaram a imitar os ruídos e os movimentos à sua volta, na esperança de comunicar-se também com esta Entidade: a dança e a música acabavam de nascer. Há alguns dias você me disse que, dançando, consegue comunicar-se com algo mais poderoso que você.”
— Quando danço, sou uma mulher livre. Melhor dizendo, sou um espírito livre, que pode viajar pelo universo, olhar o presente, adivinhar o futuro, transformar-se em energia pura. E
isso me dá um imenso prazer, uma alegria que está sempre muito mais além das coisas que já experimentei, e que terei que experimentar ao longo de minha existência.
“Em uma época da minha vida estava determinada a transformar-me em santa — louvando Deus através da música e dos movimentos do meu corpo. Mas este caminho está definitivamente fechado para mim.”
— Que caminho está fechado?
Ela ajeitou a criança no carrinho de bebê. Vi que não tinha vontade de responder à pergunta, insisti: quando as bocas se fecham, é porque algo de importante está para ser dito.
Sem demonstrar nenhuma emoção, como se tivesse que agüentar sempre em silêncio as coisas que a vida lhe impunha, ela contou-me o episódio da Igreja, quando o padre — talvez seu único 193
amigo — lhe havia recusado a comunhão. E a maldição que lançara naquele minuto; abandonara para sempre a Igreja Católica.
— Santo é aquele que dignifica sua vida — expliquei. —
Basta entender que todos nós estamos aqui por uma razão, e basta comprometer-se com ela. Assim, podemos rir de nossos grandes ou pequenos sofrimentos, e caminhar sem medo, conscientes de que cada passo tem um sentido. Podemos deixar-nos guiar pela luz que emana do Vértice.
— O que é o Vértice? Em matemática, é o ponto superior de um triângulo.