sempre temos projetos a serem desenvolvidos, lâmpadas que precisam ser trocadas, folhas secas que devem ser varridas, arrumação de livros, organização dos arquivos do computador, etc.
Mas que tal encarar o vazio total? E foi neste momento que me lembrei de algo que me pareceu extremamente importante: precisava ir até a caixa de correio, que fica a um quilômetro de minha casa de campo, colocar um dos cartões de boas-festas que ficara esquecido em cima de minha mesa.
“E fiquei surpreso: por que preciso enviar este cartão hoje? Será que é impossível ficar como estou agora, sem fazer nada?
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“Uma série de pensamentos cruzou minha cabeça: amigos que se preocupam com coisas que ainda não aconteceram, conhecidos que sabem preencher cada minuto de suas vidas com tarefas que me parecem absurdas, conversas sem sentido, telefonemas longos para não dizer nada de importante. Já vi meus diretores inventando trabalho para justificar seus cargos, ou funcionários que ficam com medo porque não lhes foi dado nada de importante para fazer aquele dia e isso pode significar que não são mais úteis. Minha mulher que se tortura porque meu filho se divorciou, meu filho que se tortura porque meu neto teve notas baixas na escola, meu neto que morre de medo porque entristece seus pais — embora todos nós saibamos que estas notas não são tão importantes assim.
“Travei uma longa e difícil luta comigo mesmo para não me levantar dali onde estava. Pouco a pouco, a ansiedade foi cedendo lugar à contemplação, e eu comecei a escutar minha alma —
ou intuição, ou emoções primitivas, dependendo do que você acredite. Seja o que for, esta parte de mim estava louca para conversar, mas eu vivo ocupado.
“Neste caso não foi a dança, mas a completa ausência de ruído e de movimento, o silêncio, que me fez entrar em contato comigo. E, acredite se quiser, aprendi muitas coisas sobre os problemas que me preocupavam — embora todos estes problemas tivessem se afastado por completo enquanto eu estava ali sentado.
Não vi Deus, mas pude entender mais claramente as decisões a tomar.”
Antes de pagar a conta, ele sugeriu que eu enviasse a tal funcionária a Dubai, onde o banco estava abrindo uma nova agência, e os riscos eram grandes. Como um excelente diretor, sabia que eu já aprendera tudo que precisava, e agora era apenas uma questão de dar continuidade — a funcionária podia ser mais útil em outro lugar. Sem que soubesse, estava me ajudando a cumprir a promessa que havia feito.
Quando voltei a Londres, imediatamente comuniquei o convite a Athena. Ela aceitou na hora; disse que falava árabe fluentemente (eu sabia, por causa das origens de seu pai). Mas 211
não pretendíamos fazer negócios com árabes, e sim com estrangeiros. Agradeci sua ajuda, ela não demonstrou qualquer curiosidade sobre minha palestra na convenção — perguntou apenas quando devia preparar as malas.
Até hoje não sei se é fantasia esta história de namorado da Scotland Yard. Acho que, se fosse verdade, o assassino de Athena já estaria preso — porque não acredito em nada do que os jornais contaram a respeito do crime. Enfim, posso entender muito bem de engenharia financeira, posso até mesmo dar-me ao luxo de dizer que a dança ajuda os funcionários de banco a trabalharem melhor, mas jamais conseguirei compreender por que a melhor polícia do mundo consegue prender alguns assassinos, e deixar outros soltos.
Isso, entretanto,já não faz mais diferença.
Nabil Alaihi, idade desconhecida, beduíno Fico muito contente em saber que Athena tinha uma foto minha no lugar de honra de seu apartamento, mas não creio que o que lhe ensinei tenha qualquer utilidade. Ela veio até aqui, no meio do deserto, trazendo pelas mãos uma criança de três anos.
Abriu sua bolsa, retirou um radiogravador, e sentou-se diante da minha tenda. Sei que pessoas na cidade costumavam indicar meu nome para estrangeiros que gostariam de provar a cozinha local, e logo disse que ainda era muito cedo para jantar.
— Vim por outra razão — disse a mulher. — Soube através de seu sobrinho Hamid, cliente do banco onde trabalho, que o senhor é um sábio.
— Hamid é apenas um jovem tolo, que embora diga que sou sábio, jamais seguiu meus conselhos. Sábio foi Mohammed, o Profeta, que a bênção de Deus esteja com ele.
Apontei para seu carro.
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— Você não devia dirigir sozinha em um terreno a que não está acostumada, e tampouco se aventurar por aqui sem um guia.
Em vez de me responder, ela ligou o aparelho. Em seguida, tudo que pude ver era aquela mulher flutuando nas dunas, a criança olhando espantada e alegre, e o som que parecia inundar o deserto inteiro. Quando terminou, perguntou se eu havia gostado.
Disse que sim. Em nossa religião existe uma seita que dança para encontrar-se com Allah — louvado seja Seu nome! ( N.R.: a seita em questão é o sufismo) .
— Pois bem — continuou a mulher, apresentando-se como Athena. — Desde criança sinto que devo aproximar-me de Deus, mas a vida termina por me afastar Dele. A música foi uma das maneiras que encontrei; não é o bastante. Sempre que danço, vejo uma luz, e esta luz agora me pede que vá mais adiante. Não posso continuar aprendendo apenas comigo mesmo, preciso que alguém me ensine.
— Qualquer coisa é bastante — respondi. — Porque Allah, o misericordioso, está sempre próximo. Tenha uma vida digna, isso basta.
Mas a mulher parecia não estar convencida. Eu disse que estava ocupado, precisava preparar o jantar para os poucos turistas que deviam aparecer. Ela respondeu que esperaria o quanto fosse necessário.
— E a criança?
— Não se preocupe.
Enquanto tomava as providências de sempre, observava a mulher e seu filho, os dois pareciam ter a mesma idade; corriam pelo deserto, riam, faziam batalhas de areia, atiravam-se no chão e rolavam pelas dunas. Chegou o guia com três turistas alemães, que comeram, pediram cerveja, precisei explicar que minha religião me impedia de beber ou servir bebidas alcoólicas.
Convidei a mulher e seu filho para jantarem, e um dos alemães logo ficou bastante animado com a inesperada presença feminina.
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Comentou que estava pensando em comprar terrenos, tinha uma grande fortuna acumulada, e acreditava no futuro da região.
— Ótimo — foi a resposta dela. — Também acredito.
— Será que não seria bom jantarmos em outro lugar, para poder discutir melhor a possibilidade de...
— Não — ela cortou, estendendo-lhe um cartão. — Se desejar, pode procurar minha agência.
Quando os turistas foram embora, nos sentamos na frente da tenda. O menino logo dormiu em seu colo; peguei cobertores para todos nós, e ficamos olhando o céu estrelado.
Finalmente ela quebrou o silêncio.
— Por que Hamid diz que o senhor é sábio?
— Talvez porque tenha mais paciência que ele. Houve uma época em que tentei lhe ensinar minha arte, mas Hamid parecia mais preocupado em ganhar dinheiro. Hoje deve estar convencido que é mais sábio que eu; tem um apartamento, um barco, enquanto eu estou aqui no meio do deserto, servindo aos poucos turistas que aparecem. Não entende que estou satisfeito com o que faço.
— Entende perfeitamente, porque fala a todos do senhor, com muito respeito. E o que significa sua “arte”?
— Vi hoje você dançando. Eu faço a mesma coisa, só que, em vez de mover meu corpo, são as letras que dançam.
Ela pareceu surpresa.
— Minha maneira de me aproximar de Allah — que seu nome seja louvado! — foi através da caligrafia, a busca do sentido perfeito para cada palavra. Uma simples letra requer que coloquemos nela toda a força que contém, como se estivéssemos esculpindo o seu significado. Assim, quando os textos sagrados são escritos, ali está a alma do homem que serviu de instrumento para divulgá-los ao mundo.