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“E não apenas os textos sagrados, mas cada coisa que colocamos no papel. Porque a mão que traça as linhas reflete a alma de quem as escreve.”

— Você me ensinaria o que sabe?

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— Em primeiro lugar, não creio que uma pessoa tão cheia de energia tenha paciência para isso. Além do mais, não faz parte do seu mundo, onde as coisas são impressas — sem que pensem muito no que estão publicando, se me permite o comentário.

— Gostaria de tentar.

E durante mais de seis meses, aquela mulher que eu julgava agitada, exuberante, incapaz de ficar quieta por um só momento, passou a me visitar todas as sextas-feiras. O filho sentava-se em um canto, pegava alguns papéis e pincéis, e dedicava-se, também ele, a manifestar em seus desenhos aquilo que os céus assim determinavam.

Eu via seu esforço gigantesco para manter-se quieta, na postura adequada, e perguntava: “você não acha melhor procurar outra coisa para distrair-se?”. Ela respondia: “Preciso disso, preciso acalmar minha alma, e ainda não aprendi tudo que você pode me ensinar. A luz do Vértice me disse que eu devo seguir adiante”. Nunca perguntei o que era Vértice, não me interessava.

A primeira lição, e talvez a mais difícil, foi:

— Paciência!

Escrever não era apenas um ato de expressar um pensamento, mas de refletir sobre o significado de cada palavra.

Juntos começamos a trabalhar em textos de um poeta árabe, já que não creio que o Alcorão fosse indicado para uma pessoa educada em outra fé. Eu ia ditando cada letra, e assim ela se concentrava no que estava fazendo, em vez de querer saber logo o significado da palavra, da frase, ou do verso.

— Certa vez, alguém me disse que a música tinha sido criada por Deus, e que o movimento rápido era necessário para que as pessoas entrassem em contato consigo mesmas — disse Athena em uma das tardes que passamos juntos. — Durante anos, vi que isso era verdade, e agora estou sendo forçada à coisa mais difícil do mundo, desacelerar meus passos. Por que a paciência é tão importante?

— Porque ela nos faz prestar atenção.

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— Mas eu posso dançar obedecendo apenas a minha alma, que me obriga a concentrar-me em algo maior do que eu mesma, e me permite entrar em contato com Deus — se é que posso utilizar esta palavra. Isso já me ajudou a transformar muitas coisas, inclusive meu trabalho. A alma não é mais importante?

— Claro. Entretanto, se sua alma conseguir comunicar-se com seu cérebro, poderá transformar mais coisas ainda.

Continuamos nosso trabalho juntos. Eu sabia que, em determinado momento, teria que dizer algo que ela talvez não estivesse pronta para escutar, de modo que procurei aproveitar cada minuto para ir preparando seu espírito. Expliquei que antes da palavra existe o pensamento. E, antes do pensamento, existe a centelha divina que o colocou ali. Tudo, absolutamente tudo nesta terra fazia sentido, e as menores coisas deviam ser levadas em consideração.

— Eduquei meu corpo para que pudesse manifestar por inteiro as sensações da minha alma — dizia ela.

— Agora eduque apenas seus dedos, de modo que eles possam manifestar por inteiro as sensações do seu corpo. Assim, sua imensa força estará concentrada.

— O senhor é um mestre.

— O que é um mestre? Pois eu lhe respondo: não é aquele que ensina algo, mas aquele que inspira o aluno a dar o melhor de si para descobrir o que ele já sabe.

Pressenti que Athena já havia experimentado isso, embora ainda fosse muito jovem. Como a escrita revela a personalidade da pessoa, descobri que tinha consciência de que era amada, não apenas por seu filho, mas por sua família e eventualmente por um homem. Descobri também que tinha dons misteriosos, e procurei jamais demonstrar isso — já que estes dons podiam causar seu encontro com Deus, mas também sua perdição.

Não me limitava a adestrá-la na técnica; procurava também transmitir-lhe a filosofia dos calígrafos.

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— A pena com que agora escreve estes versos é apenas um instrumento. Ela não tem consciência, segue o desejo daquele que a segura. E nisso se parece muito com aquilo que chamamos de

“vida”. Muitas pessoas estão neste mundo apenas cumprindo um papel, sem entender que existe uma Mão Invisível que as guia.

“Neste momento, em suas mãos, no pincel que traça cada letra, estão todas as intenções de sua alma. Procure entender a importância disso.”

— Entendo, e vejo que é importante manter certa elegância. Porque o senhor exige que eu me sente em determinada posição, reverencie o material que vou utilizar, e só comece quando tiver feito isso.

Claro. Na medida em que respeitava o pincel, descobria que era necessário ter serenidade e elegância para aprender a escrever. E a serenidade vem do coração.

— A elegância não é uma coisa superficial, mas a maneira que o homem encontrou para honrar a vida e o trabalho.

Por isso, quando você sentir que a postura a está incomodando, não pense que ela é falsa ou artificiaclass="underline" ela é verdadeira porque é difícil. Ela faz com que tanto o papel como a pena sintam-se orgulhosos por seu esforço. O papel deixa de ser uma superfície plana e incolor, e passa a ter a profundidade das coisas que ali são colocadas.

“A elegância é a postura mais adequada para que a escrita seja perfeita. Assim também é com a vida: quando o supérfluo é descartado, o ser humano descobre a simplicidade e a concentração: quanto mais simples e mais sóbria a postura, mais bela ela será, embora no início pareça desconfortável.”

De vez em quando, ela me comentava sobre seu trabalho.

Dizia que estava entusiasmada com o que fazia, e que acabara de receber uma proposta de um poderoso emir. Ele fora ao banco para ver um amigo que era diretor (os emires jamais vão aos bancos para retirar dinheiro, têm muitos empregados para fazer isso), conversando com ela mencionou que estava procurando alguém para 217

cuidar da venda de terrenos, e gostaria de saber se estava interessada.

Quem se interessaria por comprar terrenos no meio do deserto, ou em um porto que não estava no centro do mundo?

Resolvi não comentar nada; olhando para trás, fico contente por ter ficado em silêncio.

Uma única vez falou do amor de um homem, embora sempre que turistas chegavam para jantar, e a encontravam ali, procurassem seduzi-la de alguma maneira. Normalmente Athena sequer se incomodava, até o dia em que um deles insinuou que conhecia seu namorado. Ela ficou pálida, e imediatamente olhou para o menino, que felizmente não estava prestando atenção à conversa.

— Conhece de onde?

— Estou brincando — disse o homem. — Queria apenas saber se estava livre.

Ela não respondeu nada, mas entendi que o homem que estava em sua vida não era o pai do garoto.

Um dia chegou mais cedo que de costume. Disse que tinha deixado o emprego no banco, começara a vender terrenos, e assim teria mais tempo livre. Expliquei que não podia ensiná-la antes da hora marcada, tinha uma série de coisas para fazer.

— Posso juntar as duas coisas: movimento e quietude.

Alegria e concentração.

Foi até o carro, pegou o gravador, e a partir daquele momento, Athena dançava no deserto antes de começar as aulas, enquanto a criança corria e sorria à sua volta. Quando se sentava para praticar caligrafia, sua mão estava mais segura do que normalmente.

— Existem dois tipos de letras — eu explicava. — A primeira é feita com precisão, mas sem alma. Neste caso, embora o calígrafo tenha um grande domínio da técnica, ele concentrou-se exclusivamente no ofício — e por causa disso não evoluiu, tornou-se repetitivo, não conseguiu crescer, e um dia irá deixar o 218

exercício da escrita, porque acha que tudo se transformou em rotina.

“O segundo tipo é a letra feita com técnica, mas também com alma. Para isso, é necessário que a intenção de quem escreve esteja de acordo com a palavra; neste caso, os versos mais tristes deixam de ser revestidos de tragédia, e se transformam em simples fatos que estavam em nosso caminho.”