— O que você faz com os seus desenhos? — perguntou o menino, em árabe perfeito. Embora não estivesse entendendo nossa conversa, fazia o possível para participar do trabalho da mãe.
— Eu os vendo.
— Posso vender meus desenhos?
— Deve vender seus desenhos. Um dia vai ficar rico com isso, e ajudar sua mãe.
Ele ficou contente com meu comentário, e voltou para o que estava fazendo naquele momento: uma borboleta colorida.
— E que faço com os meus textos? — perguntou Athena.
— Você sabe o esforço que custou sentar-se na posição correta, acalmar sua alma, ter clara sua intenção, respeitar cada letra de cada palavra. Mas, por enquanto, continue apenas praticando.
“Depois de muito praticar, já não pensamos em todos os movimentos necessários: eles passam a fazer parte de nossa própria existência. Antes de chegar a este estado, entretanto, é preciso treinar, repetir. E, como se não bastasse, é preciso repetir e treinar.
“Observe um bom ferreiro trabalhando o aço. Para o olhar destreinado, ele está repetindo as mesmas marteladas.
“Mas quem conhece a arte da caligrafia, sabe que cada vez que ele levanta o martelo e o faz descer, a intensidade do golpe é diferente. A mão repete o mesmo gesto, mas, à medida que se aproxima do ferro, ela compreende se deve tocá-lo com mais dureza ou mais suavidade. Assim é com a repetição: embora pareça a mesma coisa, é sempre distinta.
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“Vai chegar o momento em que não é mais preciso pensar no que se está fazendo. Você passa a ser a letra, a tinta, o papel, e a palavra.“
Este momento chegou quase um ano depois. A esta altura, Athena já era conhecida em Dubai, indicava clientes para jantar na minha tenda, e através deles pude entender que sua carreira ia muito bem: estava vendendo pedaços de deserto! Certa noite, precedido de um grande séquito, apareceu o emir em pessoa.
Eu fiquei assustado; não estava preparado para aquilo, mas ele me tranqüilizou e me agradeceu o que estava fazendo por sua funcionária.
— É uma pessoa excelente, e atribui suas qualidades ao que está aprendendo com o senhor. Estou pensando em dar-lhe uma parte na sociedade. Talvez seja bom enviar meus vendedores para aprender caligrafia, principalmente agora que Athena deve sair de férias por um mês.
— Não iria adiantar nada — respondi. — Caligrafia é apenas uma das maneiras que Allah — louvado seja Seu Nome! —
colocou diante de nós. Ensina objetividade e paciência, respeito e elegância, mas podemos aprender tudo isso...
— ... na dança — completou Athena, que estava perto.
— Ou vendendo imóveis — completei.
Quando todos saíram, quando o menino estendeu-se em um canto da tenda, os olhos quase se fechando de sono, eu trouxe o material de caligrafia e pedi que escrevesse alguma coisa. No meio da palavra, retirei a pena de sua mão. Era a hora de dizer o que precisava ser dito. Sugeri que caminhássemos um pouco pelo deserto.
— Você já aprendeu o que precisava — disse. — Sua caligrafia está cada vez mais pessoal, mais espontânea. Já não é apenas uma repetição da beleza, mas um gesto de criação pessoal.
Você entendeu o que os grandes pintores entendem: para esquecer as regras, é preciso conhecê-las e respeitá-las.
“Já não precisa dos instrumentos que a fizeram aprender. Já não precisa do papel, da tinta, da pena, porque o 220
caminho é mais importante que aquilo que a levou a caminhar.
Certa vez você me contou que a pessoa que a ensinou a dançar ficava imaginando músicas em sua cabeça — e mesmo assim, era capaz de repetir os ritmos necessários e precisos.“
— Isso mesmo.
— Se as palavras estivessem todas unidas, elas não fariam sentido, ou complicariam muito o seu entendimento: é necessário que existam espaços.
Ela concordou com a cabeça.
— E apesar de você dominar as palavras, ainda não domina os espaços em branco. Sua mão, quando está concentrada, é perfeita. Quando salta de uma palavra para a outra, ela se perde.
— Como o senhor sabe isso?
— Tenho razão?
— Tem toda razão. Em algumas frações de segundo, antes de concentrar-me na próxima palavra, eu me perco. Coisas que eu não quero pensar insistem em dominar-me.
— E você sabe exatamente o que é.
Athena sabia, mas não disse nada, até voltarmos à tenda, e poder segurar o filho adormecido no colo. Seus olhos pareciam cheios de lágrimas, embora fizesse o possível para controlar-se.
— O emir disse que você iria tirar férias.
Ela abriu a porta do carro, colocou a chave na ignição, e deu a partida. Por alguns momentos, apenas o ruído do motor quebrava o silêncio do deserto.
— Sei o que o senhor está falando — disse ela afinal.
— Quando escrevo, quando danço, sou guiada pela Mão que tudo criou. Quando olho Viorel dormindo, sei que ele sabe que é fruto de meu amor pelo pai dele, embora já não o veja há mais de um ano. Mas eu...
Ficou em silêncio de novo. O silêncio que era o espaço em branco entre as palavras.
— ... mas eu não conheço a mão que me embalou pela primeira vez. A mão que me escreveu no livro deste mundo.
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Apenas balancei a cabeça em sinal afirmativo.
— O senhor acha isso importante?
— Nem sempre. Mas no seu caso, enquanto não tocar esta mão, não irá melhorar... digamos... sua caligrafia.
— Não creio que seja necessário descobrir quem jamais se deu ao trabalho de me amar.
Fechou a porta, sorriu, e arrancou com o carro. Apesar de suas palavras, eu sabia qual seria seu próximo passo.
Samira R. Khalil, mãe de Athena
Foi como se todas as suas conquistas profissionais, sua capacidade de ganhar dinheiro, sua alegria com o novo amor, seu contentamento quando brincava com meu neto, tudo isso tivesse sido jogado para um segundo plano. Eu fiquei simplesmente aterrorizada quando Sherine me comunicou a decisão de ir em busca da sua mãe de sangue.
No início, é claro, consolava-me a idéia de que já não existia mais o centro de adoção, as fichas tivessem sido perdidas, os funcionários se mostrassem implacáveis, o governo tinha acabado de cair e era impossível viajar, ou o ventre que a trouxe a esta terra já não estivesse mais neste mundo. Mas foi um consolo momentâneo: minha filha era capaz de tudo, e conseguia superar situações que pareciam impossíveis.
Até aquele momento, o assunto era um tabu na família.
Sherine sabia que fora adotada, já que o psiquiatra em Beirute me aconselhara a contar logo que tivesse suficiente idade para compreender. Mas nunca demonstrou curiosidade em saber de que região viera — seu lar tinha sido Beirute, quando ainda era um lar para todos nós.
Como o filho adotado de uma amiga minha terminou se suicidando quando ganhou uma irmã biológica — e ele tinha apenas 16 anos! —, nós evitamos ampliar nossa família, fizemos todos os sacrifícios necessários para que entendesse que era a única razão de minhas alegrias e minhas tristezas, dos meus amores e das 222
minhas esperanças. Mesmo assim, parecia que nada disso contava; meu Deus, como os filhos podem ser tão ingratos!
Conhecendo minha filha, sabia que não adiantava argumentar nada disso com ela. Eu e meu marido passamos uma semana sem dormir, e todas as manhãs, todas as tardes, éramos bombardeados com a mesma pergunta: em que cidade da Romênia eu nasci? Para agravar a situação, Viorel chorava, porque parecia estar entendendo tudo que acontecia.
Resolvi consultar de novo um psiquiatra. Perguntei por que uma moça que tinha tudo na vida estava sempre tão insatisfeita.
— Todos nós queremos saber de onde viemos — disse ele.
— Essa é a questão fundamental do ser humano no plano filosófico.
No caso de sua filha, acho perfeitamente justo que procure saber suas origens. A senhora não teria esta curiosidade?