Não, eu não teria. Muito pelo contrário, acharia um perigo ir em busca de alguém que me recusou e me rejeitou, quando ainda não tinha forças para sobreviver.
Mas o psiquiatra insistiu:
— Ao invés de entrar em confronto com ela, procure ajudá-la. Talvez, vendo que isso não é um problema para a senhora, ela desista. O ano que passou distante de todos os seus amigos deve ter criado uma carência emocional, que agora ela está procurando compensar através de provocações sem importância.
Apenas para ter certeza que é amada.
Teria sido melhor que Sherine tivesse ido, ela mesma, ao psiquiatra: assim compreenderia as razões do seu comportamento.
— Demonstre confiança, não veja nisso uma ameaça. E se no final ela realmente quiser ir adiante, resta apenas dar os elementos que pede. Pelo que entendo, ela sempre foi uma menina problemática; quem sabe sairá mais fortalecida através desta busca.
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Perguntei se o psiquiatra tinha filhos. Ele disse que não, e logo entendi que não era a pessoa indicada para me aconselhar.
Naquela noite, quando estávamos diante da televisão, Sherine voltou ao assunto:
— O que estão assistindo?
— O noticiário.
— Para quê?
— Para saber as novidades do Líbano — respondeu meu marido.
Eu percebi a armadilha, mas já era tarde. Sherine aproveitou-se imediatamente da situação.
— Enfim, vocês também estão curiosos para saber o que está acontecendo na terra em que nasceram. Estão bem estabelecidos na Inglaterra, têm amigos, papai ganha muito dinheiro aqui, vivem em segurança. Mesmo assim, compram jornais libaneses. Mudam de canal até que surja alguma notícia relacionada com Beirute. Imaginam o futuro como se ele fosse o passado, sem se dar conta que esta guerra não acaba nunca.
“Ou seja: se não estão em contato com suas origens, sentem que perderam o contato com o mundo. Custa entender o que estou sentindo?”
— Você é nossa filha.
— Com muito orgulho. E serei para sempre a filha de vocês. Por favor, não tenham dúvidas de meu amor e minha gratidão por tudo que fizeram; eu não estou pedindo nada além de colocar meus pés no verdadeiro lugar onde nasci. Talvez perguntar à minha mãe de sangue por que me abandonou, ou talvez deixar o assunto para lá, quando olhar nos seus olhos. Se não tentar fazer isso, vou me achar covarde, e não poderei jamais entender os espaços em branco.
— Os espaços em branco?
— Aprendi caligrafia enquanto estava em Dubai. Danço sempre que posso. Mas a música só existe porque existem as pausas. As frases só existem porque existem os espaços em branco.
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Quando estou fazendo algo, me sinto completa; mas ninguém pode viver em atividade durante as 24 horas do dia. No momento em que paro, sinto que algo está faltando.
“Vocês disseram mais de uma vez que sou uma pessoa inquieta por natureza. Mas não escolhi esta maneira de viver: gostaria de poder estar aqui, tranqüila, também assistindo televisão. É impossíveclass="underline" minha cabeça não pára. Às vezes penso que vou enlouquecer, preciso estar sempre dançando, escrevendo, vendendo terrenos, cuidando de Viorel, lendo qualquer coisa que me cai adiante. Acham normal?”
— Talvez seja seu temperamento — disse meu marido.
A conversa terminou ali, da maneira que sempre terminava: Viorel chorando, Sherine fechando-se em seu mutismo, e eu certa de que os filhos nunca reconhecem o que os pais fazem por eles. Entretanto, durante o café-da-manhã no dia seguinte, foi meu marido quem puxou o assunto:
— Há algum tempo, quando você estava no Oriente Médio, eu tentei ver as condições de voltar para casa. Fui até a rua onde vivemos; a casa não existe mais, embora o país esteja sendo reconstruído, mesmo com a ocupação estrangeira e as invasões constantes. Experimentei uma sensação de euforia; quem sabe era o momento de recomeçar tudo de novo? E foi justamente esta palavra,
“recomeçar”, que me trouxe de volta à realidade. Eu já passei do tempo onde podia me dar a esse luxo; hoje em dia, quero continuar o que estou fazendo, não preciso de novas aventuras.
“Procurei as pessoas que costumava encontrar para beber uns copos de uísque no final da tarde. A maioria não está mais ali, as que ficaram vivem se queixando da constante sensação de insegurança. Caminhei pelos lugares onde passeava, e me senti um estranho, como se nada daquilo me pertencesse mais. O pior de tudo é que o sonho de retornar um dia ia desaparecendo à medida que eu me encontrava com a cidade onde nasci.
“Mesmo assim, foi necessário. As canções do exílio ainda continuam em meu coração, mas sei que não tornarei nunca mais a viver no Líbano. De alguma maneira, os dias passados em 225
Beirute me ajudaram a entender melhor o lugar onde estou agora, e valorizar cada segundo que passo em Londres.”
— O que você está querendo me dizer, papai?
— Que você está certa. Talvez seja melhor mesmo entender estes espaços brancos. Podemos ficar com Viorel enquanto estiver viajando.
Ele foi até o quarto, e voltou com uma pasta amarelada. Eram os papéis de adoção — que estendeu para Sherine.
Deu-lhe um beijo, e disse que já era hora de partir para o trabalho.
Heron Ryan, jornalista
Durante toda aquela manhã de 1990, tudo que eu podia ver da janela no sexto andar daquele hotel era o prédio do governo. Acabavam de colocar em seu teto uma bandeira do país, indicando o local exato onde o ditador megalomaníaco havia fugido de helicóptero, para encontrar-se com a morte poucas horas depois, nas mãos daqueles que havia oprimido por 22 anos. As casas antigas tinham sido arrasadas por Ceaucescu, no seu plano de fazer uma capital que se rivalizasse com Washington. Bucareste ostentava o título da cidade que sofrera a maior destruição fora de uma guerra ou de uma catástrofe natural.
No dia de minha chegada, ainda tentei caminhar um pouco por suas ruas com meu intérprete, mas não havia muita coisa além de miséria, desorientação, senso de que não havia nem futuro, nem passado, nem presente: as pessoas viviam em uma espécie de limbo, sem saber exatamente o que estava se passando em seu país e no resto do mundo. Dez anos mais tarde, quando voltei e vi o país inteiro ressurgindo das cinzas, entendi que o ser humano pode superar qualquer dificuldade — e o povo romeno era um exemplo disso.
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Mas naquela manhã cinzenta, naquele cinzento hall de um hotel triste, tudo que me preocupava era saber se o intérprete conseguiria um carro e combustível suficiente para que eu pudesse fazer a pesquisa final do documentário para a BBC. Ele estava demorando, e comecei a encher-me de dúvidas: seria obrigado a voltar para a Inglaterra sem conseguir meu objetivo? Já havia investido uma quantidade significativa de dinheiro em contratos com historiadores, na elaboração do roteiro, na filmagem de algumas entrevistas — mas a televisão, antes de assinar o compromisso final, exigia que eu fosse até o tal castelo e saber em que estado se encontrava. A viagem que estava custando mais caro do que eu imaginara.
Tentei telefonar para minha namorada; disseram-me que para conseguir uma linha era necessário esperar quase uma hora.
Meu intérprete poderia chegar a qualquer momento com o carro, não havia tempo a perder, resolvi não correr o risco.
Procurei ver se conseguia algum jornal em inglês, mas foi impossível. Para matar a ansiedade, comecei a reparar, da maneira mais discreta possível, nas pessoas que estavam ali tomando o seu chá, possivelmente alheias a tudo que havia se passado no ano anterior — as revoltas populares, os assassinatos a sangue-frio de civis em Timisoara, os tiroteios nas ruas entre o povo e o temido serviço secreto, que tentava desesperadamente manter o poder que lhe escapava das mãos. Notei um grupo de três americanos, uma mulher interessante, mas que não desgrudava os olhos de uma revista de moda, e uma mesa cheia de homens que conversavam em voz alta, mas cuja língua eu não conseguia identificar.