— Sim, era isso que eu queria saber.
— Precisava vir tão longe para pesquisar um escritor?
Não existem bibliotecas no lugar onde vive?
— Na verdade, tal escritor viveu na Romênia apenas até terminar a universidade. De modo que, se eu quisesse saber mais do seu trabalho, deveria ir para Paris, Londres, ou Chicago —
onde faleceu. Portanto, o que estou fazendo não é a pesquisa no sentido clássico: quero ver onde colocou seus pés. Quero sentir o que o inspirou a escrever sobre coisas que afetam minha vida e a vida das pessoas que respeito.
— Ele escreveu também sobre medicina?
Melhor não responder. Vi que tinha notado a palavra
“mestre”, mas achava que estava relacionada à minha profissão.
A moça levantou-se. Penso que ela pressentia onde eu queria chegar — podia ver sua luz brilhando com mais intensidade.
Só consigo entrar neste estado de percepção quando estou próxima de alguém muito parecida comigo.
— Se incomoda de me acompanhar até a estação? —
perguntou.
De maneira nenhuma. Meu avião sairia apenas no final da noite, e um dia inteiro, aborrecido, interminável, estendia-se diante de mim. Pelo menos tinha com quem conversar um pouco.
Ela subiu, voltou com suas malas nas mãos e com uma série de perguntas na cabeça. Começou seu interrogatório assim que saímos do hotel.
— Talvez eu nunca mais a veja — disse. — Mas sinto que temos alguma coisa em comum. Portanto, já que esta pode ser a última chance de conversarmos nesta encarnação, você se importaria de ser direta em suas respostas?
Eu concordei com um aceno de cabeça.
— Já que você leu esses livros, acredita que a dança pode nos levar a um transe, e nos fazer ver uma luz? E que esta 232
luz não nos diz absolutamente nada, exceto se estamos contentes ou tristes?
Pergunta certa!
— Sem dúvida. Mas não apenas a dança; tudo aquilo em que conseguirmos concentrar a atenção, e nos permite separar o corpo do espírito. Como a ioga, ou a oração, ou a meditação dos budistas.
— Ou a caligrafia.
— Não tinha pensado nisso, mas é possível. Nestes momentos em que o corpo liberta a alma, ela sobe aos céus ou desce aos infernos, dependendo do estado de espírito da pessoa.
Nos dois lugares, aprende coisas que precisa: seja destruir o seu próximo, seja curar. Mas já não me interesso mais por estes caminhos individuais; na minha tradição, preciso da ajuda de...
você está prestando atenção no que digo?
— Não.
Vi que tinha parado no meio da rua, e olhava uma menina que parecia abandonada. Na mesma hora enfiou a mão em sua bolsa.
— Não faça isso — eu disse. — Olhe para o outro lado da calçada — ali tem uma mulher com os olhos de maldade. Ela colocou esta criança aí, para...
— Não me interessa.
A moça tirou algumas moedas. Eu segurei sua mão.
— Vamos convidá-la para comer alguma coisa. É mais útil.
Convidei a criança para ir até um bar, comprei um sanduíche, e entreguei-o. A menina sorriu e agradeceu; os olhos da mulher do outro lado da rua pareciam brilhar de ódio. Mas as pupilas cinzentas da moça que caminhava ao meu lado, pela primeira vez, demonstravam respeito pelo que eu acabara de fazer.
— O que você estava mesmo dizendo?
— Não importa. Sabe o que aconteceu há alguns minutos?
Você entrou no mesmo transe que a dança provoca.
— Está errada.
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— Estou certa. Algo tocou o seu inconsciente; talvez tenha visto a si mesma, se não tivesse sido adotada, mendigando nesta rua. Neste momento, seu cérebro parou de reagir. Seu espírito saiu, viajou para o inferno, encontrou-se com os demônios do seu passado. Por causa disso, não notou a mulher do outro lado da rua — estava em transe. Um transe desorganizado, caótico, que a empurrava a fazer algo teoricamente bom, mas praticamente inútil. Como se você estivesse...
— ... em um espaço em branco entre as letras. No momento que uma nota de música termina, e a outra ainda não começou.
— Exatamente. E um transe provocado desta maneira pode ser perigoso.
Quase disse: “este é o tipo de transe provocado pelo medo: paralisa a pessoa, a deixa sem reação, seu corpo não responde, sua alma já não está mais ali. Você ficou aterrorizada por tudo que poderia ter acontecido caso o destino não tivesse colocados seus pais no caminho”. Mas ela havia deixado as malas no chão, e me encarava de frente.
— Quem é você? Por que está me dizendo tudo isso?
— Como médica, me chamam de Deidre O’Neill. Muito prazer — e qual é o seu nome?
— Athena. Mas no passaporte está escrito Sherine Khalil.
— Quem lhe deu este nome?
— Ninguém importante. Mas não lhe perguntei seu nome: perguntei quem é. E porque se aproximou de mim. E por que eu senti a mesma necessidade de conversar com você. Será que foi o fato de sermos as duas únicas mulheres naquele bar? Não creio: e está me dizendo coisas que fazem sentido na minha vida.
Tornou a pegar as malas, e continuamos a caminhar em direção à estação de ônibus.
— Eu também tenho um segundo nome: Edda. Mas ele não foi escolhido ao acaso. Como tampouco creio que o acaso nos colocou juntas.
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Diante de nós estava a porta da estação de ônibus, com várias pessoas entrando e saindo, militares em seus uniformes, camponeses, mulheres bonitas mas vestidas como se vivessem há cinqüenta anos.
— Se não foi o acaso, você acha que foi o quê?
Ainda faltava meia hora para que seu ônibus partisse, e eu podia ter respondido: foi a Mãe. Alguns espíritos escolhidos emitem uma luz especial, devem se encontrar, e você — Sherine ou Athena — é um destes espíritos, mas precisa trabalhar muito para usar esta energia em seu favor.
Podia ter explicado que estava seguindo o caminho clássico de uma feiticeira, que busca através da individualidade o seu contato com o mundo superior e inferior, mas termina sempre destruindo sua própria vida — serve, dá energia, e jamais a recebe de volta.
Podia ter explicado que, embora os caminhos sejam individuais, existe sempre a etapa onde as pessoas se unem, celebram juntas, discutem suas dificuldades, e se preparam para o Renascer da Mãe. Que o contato com a Luz Divina é a maior realidade que um ser humano pode experimentar, e mesmo assim, na minha tradição, este contato não podia ser feito de maneira solitária, porque existiam anos, séculos de perseguição, que nos ensinaram muitas coisas.
— Você não quer entrar para tomar um café, enquanto espero o ônibus?
Não, eu não queria. Ia terminar dizendo coisas que, a esta altura, seriam mal interpretadas.
— Certas pessoas foram muito importantes na minha vida
— continuou ela. — O proprietário do meu apartamento, por exemplo. Ou um calígrafo que conheci no deserto perto de Dubai.
Quem sabe me diga coisas que eu possa dividir com eles, e retribuir tudo que me ensinaram.
Então, ela já tivera mestres em sua vida: ótimo! Seu espírito estava maduro. Tudo que precisava era continuar seu 235
treinamento; caso contrário, iria terminar perdendo o que tinha conquistado. Mas seria eu a pessoa indicada?
Em uma fração de segundo, pedi que a Mãe me
inspirasse, me dissesse algo. Não tive resposta — o que não me surpreendeu, porque Ela sempre agia assim quando eu precisava arcar com a responsabilidade de uma decisão.
Estendi meu cartão de visitas, e pedi o seu. Ela me deu um endereço de Dubai, que eu não tinha a menor idéia de onde ficava.
Resolvi brincar um pouco, e testar um pouco mais.
— Não é um pouco de coincidência que três ingleses se encontrem em um bar de Bucareste?
— Pelo que vejo no seu cartão, você é escocesa. O tal homem parece trabalhar na Inglaterra, mas eu não sei nada a respeito dele.
Respirou fundo.
— E eu sou... romena.
Expliquei que precisava voltar correndo para o hotel e arrumar minhas malas.