Agora ela sabia onde me encontrar, e, se estivesse escrito, nos veríamos de novo; é importante permitir que o destino interfira em nossas vidas, e decida o que é melhor para todos.
Vosho “Bushalo”, 65 anos, dono de restaurante Esses europeus chegam aqui achando que sabem de tudo, que merecem um melhor tratamento, que têm o direito de nos inundar de perguntas, e somos obrigados a respondê-las. Por outro lado, acham que trocando nosso nome para algo mais complicado, como “povo viajante”, ou “os roma”, podem corrigir os erros que cometeram no passado.
Por que não continuam nos chamando de ciganos, e procuram acabar com as lendas que sempre nos fizeram parecer malditos diante dos olhos do mundo? Nos acusam de frutos da união 236
ilícita entre uma mulher e o próprio demônio. Dizem que um de nós forjou os cravos que pregaram o Cristo na cruz, que as mães deviam ter cuidado quando as nossas caravanas se aproximam, porque costumamos roubar crianças e transformá-las em escravas.
E por causa disso permitiram massacres ao longo da história — fomos caçados como as bruxas na Idade Média, durante séculos os tribunais alemães não aceitavam nosso testemunho.
Quando o vento nazista varreu a Europa eu já havia nascido, e vi meu pai sendo deportado para um campo de concentração na Polônia, com o humilhante símbolo de um triângulo negro costurado em sua roupa. Dos 500.000 ciganos enviados para trabalho escravo, sobreviveram apenas 5.000 para contar a história.
E ninguém, absolutamente ninguém, quer escutar isso.
Nesta região esquecida da terra, onde a maior parte das tribos resolveu se instalar, até o ano passado nossa cultura, religião e língua eram proibidas. Se perguntarem a qualquer pessoa da cidade o que acham dos ciganos, dirão sem pensar muito:
“são todos ladrões”. Por mais que tentemos levar uma vida normal, deixando a eterna peregrinação e vivendo em lugares onde poderemos ser facilmente identificados, o racismo continua. Meus filhos são obrigados a sentar-se nas filas de trás de suas salas de aula, e não há semana que não sejam insultados por alguém.
Depois reclamam que não respondemos diretamente as perguntas, que procuramos nos disfarçar, que jamais comentamos abertamente nossas origens. Para que fazer isso? Todo mundo sabe distinguir um cigano, e todo mundo sabe como se “proteger” das nossas “maldades”.
Quando aparece uma menina metida a intelectual, sorrindo, dizendo que faz parte de nossa cultura e de nossa raça, eu logo me coloco de guarda. Pode ser um dos enviados da Securitate, a polícia secreta deste louco ditador, o Conducator, o Gênio dos Cárpatos, o Líder. Dizem que ele foi julgado e fuzilado, mas eu não acredito; seu filho ainda tem poder nesta região, embora esteja desaparecido no momento.
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A menina insiste; sorrindo — como se fosse muito engraçado o que está dizendo — afirma que sua mãe é cigana, e que gostaria de encontrá-la. Tem o seu nome completo; como conseguiu obter tal informação sem o apoio da Securitate?
Melhor não irritar gente que tem contatos com o governo. Eu digo que não sei de nada, sou apenas um cigano que resolveu estabelecer uma vida honesta, mas ela continua insistindo; quer ver a mãe. Eu sei quem é, sei também que há mais de vinte anos ela teve uma criança que entregou a um orfanato, e não se teve mais notícias. Fomos forçados a aceitá-la em nosso meio por causa daquele ferreiro que se achava dono do mundo. Mas quem garante que a moça intelectual que está na minha frente é a filha de Liliana? Antes de procurar saber quem é sua mãe, devia pelo menos respeitar alguns de nossos costumes, e não aparecer vestida de vermelho, porque não é o dia do seu casamento. Devia usar saias mais longas, para evitar a luxúria dos homens. E nunca podia me dirigir a palavra da maneira que ela me dirigiu.
Se hoje falo dela no presente, é porque para aqueles que viajam o tempo não existe — apenas o espaço. Viemos de muito longe, uns dizem que da Índia, outros afirmam que nossa origem está no Egito, o fato é que carregamos o passado como se tivesse acontecido agora. E as perseguições ainda continuam.
A moça tenta ser simpática, mostra que conhece nossa cultura, quando isso não tem a menor importância; devia conhecer mesmo nossas tradições.
— Soube na cidade que o senhor é um Rom Baro, um chefe de tribo. Antes de vir até aqui, aprendi muito sobre a nossa história...
— Não é a “nossa”, por favor. É a minha, da minha mulher, dos meus filhos, da minha tribo. Você é uma européia.
Você jamais foi apedrejada na rua, como eu fui quando tinha cinco anos.
— Acho que as coisas estão melhorando.
— Sempre melhoraram, para piorar depois.
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Mas ela não pára de sorrir. Pede um uísque; nossas mulheres nunca fariam isso.
Se tivesse entrado aqui apenas para beber, ou para procurar companhia, seria tratada como uma cliente. Eu aprendi a ser simpático, atencioso, elegante, porque meu negócio depende disso. Quando os freqüentadores de meu restaurante querem saber mais sobre ciganos, digo umas tantas coisas curiosas, aviso que escutem o conjunto que vai tocar daqui a pouco, comento dois ou três detalhes de nossa cultura, e saem daqui com a impressão de que conhecem tudo a respeito da gente.
Mas a moça não veio aqui em busca de turismo: ela afirma que faz parte da raça.
Ela me estende de novo o certificado que conseguiu do governo. Acho que o governo mata, rouba, mente, mas não se arrisca a fornecer certificados falsos, e que ela deve ser mesmo filha de Liliana, porque ali está o nome inteiro dela e o lugar onde vivia. Soube pela televisão que o Gênio dos Cárpatos, o Pai do Povo, o Conducator de todos nós, aquele que nos fez passar fome enquanto exportava tudo para o estrangeiro, o que tinha os palácios com talheres revestidos de ouro enquanto o povo morria de inanição, este homem com sua maldita mulher costumavam pedir que a Securitate percorresse orfanatos pegando bebês para serem treinados como assassinos pelo Estado.
Pegavam apenas os meninos, deixavam as meninas. Talvez seja mesmo a filha.
Olho de novo o certificado, e fico pensando se devo ou não dizer onde sua mãe se encontra. Liliana merece encontrar esta intelectual, dizendo que é “uma de nós”. Liliana merece olhar esta mulher de frente; acho que já sofreu tudo que precisava sofrer depois que traiu seu povo, deitou-se com um gaje ( N. R: estrangeiro), envergonhou seus pais. Talvez seja o momento de terminar com seu inferno, ver que a filha sobreviveu, ganhou dinheiro, e poderá até ajudá-la a sair da miséria em que se encontra.
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Talvez eu possa cobrar algo pela informação. E, no futuro, nossa tribo consiga alguns favores, porque vivemos tempos confusos, onde todos dizem que o Gênio dos Cárpatos está morto, chegam a mostrar cenas de sua execução, mas ele pode ressurgir amanhã, tudo não passou de um excelente golpe para ver quem estava do seu lado, e quem estava disposto a traí-lo.
Os músicos vão começar daqui a pouco, melhor falar de negócios.
— Sei onde esta mulher se encontra. E posso levá-la até ela.
O meu tom de conversa agora está mais simpático.
— Entretanto, acho que esta informação vale alguma coisa.
— Eu já estava preparada para isso — responde, estendendo muito mais dinheiro do que eu pensava pedir.
— Isso não dá nem para pagar o táxi até lá.
— Terá uma quantidade igual, quando eu tiver chegado ao meu destino.
E sinto que, pela primeira vez, ela vacila. Parece que tem medo de seguir adiante. Pego logo o dinheiro que depositou no balcão.
— Amanhã eu a levo até Liliana.
As mãos dela tremem. Ela pede outro uísque, mas de repente um homem entra no bar, muda de cor, e vem imediatamente em sua direção; entendo que devem ter se conhecido ontem e hoje já estão conversando como se fossem velhos amigos. Os seus olhos a desejam. Ela está plenamente consciente disso, e provoca ainda mais. O homem pede uma garrafa de vinho, os dois sentam-se em uma mesa, e parece que a história da mãe foi completamente esquecida.