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dividi momentos que jamais esquecerei. Momentos que eu não poderia fazer com que a criança entendesse, ela seria sempre estigmatizada no seio de nossa tribo, uma gaje, uma menina sem pai. Eu poderia suportar, mas não queria que ela passasse pelo mesmo sofrimento que eu vinha passando desde que descobri que estava grávida.

Chorava e arranhava a mim mesma, pensando que a dor talvez me fizesse pensar menos, voltar para a vida, para a vergonha da tribo; alguém tomaria conta da menina, e eu sempre viveria com a idéia de revê-la um dia, quando estivesse grande.

Sentei-me no chão, agarrei-me em uma árvore sem conseguir parar de chorar. Mas, quando as minhas lágrimas e o sangue dos meus ferimentos tocaram seu caule, uma estranha calma tomou conta de mim. Parecia que eu escutava uma voz dizendo que não me preocupasse, que o meu sangue e minhas lágrimas haviam purificado o caminho da menina e diminuído o meu sofrimento.

Desde então, sempre que entro em desespero, me lembro desta voz, e me tranqüilizo.

Por isso, não foi surpresa vê-la chegar com o Rom Baro de nossa tribo — que pediu café, bebida, sorriu com ironia, e logo foi embora. A voz me dissera que ela voltaria, e agora está aqui, na minha frente. Bonita, parecida com o pai, não sei o que sente por mim — talvez ódio por tê-la abandonado um dia. Não preciso explicar por que fiz isso; ninguém no mundo poderia mesmo compreender.

Ficamos uma eternidade sem dizer nada uma para a outra, apenas olhando — sem sorrir, sem chorar, sem nada. Um surto de amor sai do fundo da minha alma, não sei se está interessada no que sinto.

— Você está com fome? Quer comer algo?

O instinto. Sempre o instinto em primeiro lugar. Ela faz que “sim” com a cabeça. Entramos no pequeno quarto onde vivo

— e que serve ao mesmo tempo de sala, dormitório, cozinha, e ateliê de costura. Ela olha para aquilo tudo, está espantada, mas finjo que não notei: vou até o fogão, volto com dois pratos da 245

espessa sopa de vegetais e gordura animal. Preparo um café forte, e, quando vou colocar açúcar, escuto sua primeira frase:

— Puro, por favor. Não sabia que falava inglês.

Ia dizer “foi seu pai”, mas me controlei. Comemos em silêncio, e, à medida que o tempo vai passando, tudo começa a me parecer familiar, estou ali com minha filha, ela caminhou o mundo e agora está de volta, conheceu outros caminhos e retorna para casa. Sei que é uma ilusão, mas a vida me deu tantos momentos de dura realidade, que não custa sonhar um pouco.

— Quem é esta santa? — aponta para um quadro na parede.

— Santa Sarah, a padroeira dos ciganos. Sempre quis visitar sua igreja, na França, mas não podemos sair daqui. Não conseguiria passaporte, permissão, e...

Ia dizer: “mesmo que conseguisse, não teria dinheiro”, mas interrompi a frase. Ela podia achar que estava lhe pedindo algo.

-... e estou muito ocupada com meu trabalho.

O silêncio retorna. Ela termina a sopa, acende um cigarro, seu olhar não demonstra nada, nenhum sentimento.

— Você achou que tornaria a me ver de novo?

Respondo que sim. E soube ontem, pela mulher do Rom Baro, que ela estava em seu restaurante.

— Uma tempestade se aproxima. Você não quer dormir um pouco?

— Não escuto nenhum ruído. O vento não está soprando nem mais forte, nem mais fraco do que antes. Prefiro conversar.

— Acredite em mim. Tenho o tempo que quiser, tenho a vida que me resta para estar ao seu lado.

— Não diga isso agora.

— ... mas você está cansada — continuo, fingindo que não ouvi seu comentário. Vejo a tempestade que se aproxima. Como toda e qualquer tempestade, ela traz destruição; mas ao mesmo tempo molha os campos, e a sabedoria do céu desce junto com a sua 246

chuva. Como toda e qualquer tempestade, ela deve passar. Quanto mais violenta, mais rápida.

Graças a Deus, aprendi a enfrentar tempestades.

E, como se as Santas Marias do Mar me escutassem, começam a cair as primeiras gotas no teto de zinco. A moça termina seu cigarro, eu a pego pelas mãos, conduzo até minha cama. Ela deita-se e fecha os olhos.

Não sei quanto tempo dormiu; eu a contemplava sem pensar em nada, e a voz que um dia havia escutado na floresta me dizia que estava tudo bem, que não devia me preocupar, que as mudanças que o destino provoca nas pessoas são favoráveis se soubermos decifrar o que elas contêm. Não sei quem a havia recolhido do orfanato, a educado, a transformado na mulher independente que parecia ser. Fiz uma prece por essa família que havia permitido a minha filha sobreviver e melhorar de vida. No meio da prece, senti ciúme, desespero, arrependimento, e parei de conversar com Santa Sarah; será que tinha sido realmente importante trazê-la de volta? Ali estava tudo que eu perdi e jamais poderia recuperar.

Mas ali também estava a manifestação física de meu amor. Eu não sabia de nada, e ao mesmo tempo tudo me era revelado, voltavam as cenas em que eu pensei em suicídio, considerei o aborto, imaginei-me deixando aquele canto do mundo e seguindo a pé até onde minhas forças agüentassem, o momento em que vi meu sangue e minhas lágrimas na árvore, a conversa com a natureza que se intensificou a partir deste momento, e jamais me deixou desde então — embora pouca gente da minha tribo soubesse disso. O meu protetor, que me encontrou vagando na floresta, era capaz de entender tudo isso, mas ele acabara de morrer.

“A luz é instável, apaga-se com o vento, acende-se com o raio, nunca está ali, brilhando como o sol — mas vale a pena lutar por ela”, dizia ele.

O único que me havia aceitado, e convencido a tribo de que eu podia tornar a fazer parte daquele mundo. O único com autoridade moral suficiente para evitar que eu fosse expulsa.

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E, infelizmente, o único que não iria jamais conhecer a minha filha. Chorei por ele, enquanto ela permanecia imóvel na minha cama, ela que devia estar acostumada com todo o conforto do mundo. Milhares de perguntas voltaram — quem eram seus pais adotivos, onde vivia, se tinha feito a universidade, se amava alguém, quais os seus planos. Entretanto não tinha sido eu quem correra o mundo atrás dela, mas o contrário; portanto, eu não estava ali para fazer perguntas, e sim para respondê-las.

Ela abriu os olhos. Pensei em tocar seu cabelo, dar-lhe o carinho que havia guardado durante todos estes anos, mas fiquei sem saber sua reação, e achei melhor controlar-me.

— Você veio até aqui para saber o motivo...

— Não. Não quero saber por que uma mãe abandona sua filha; não existe motivo para isso.

Suas palavras cortam meu coração, mas eu não sei como responder.

— Quem sou eu? Que sangue corre em minhas veias?

Ontem, depois que soube que podia encontrá-la, experimentei um estado completo de terror. Por onde começo? Você, como todas as ciganas, deve saber ler o futuro nas cartas, não é verdade?

— Não é verdade. Só fazemos isso com os gaje, os estrangeiros, como meio de ganhar a vida. Jamais lemos cartas, mãos, ou tentamos prever o futuro quando estamos com nossa tribo.

E você...

— ...sou parte da tribo. Mesmo que a mulher que me trouxe ao mundo tenha me enviado para longe.

— Sim.

— Então, o que estou fazendo aqui? Já vi seu rosto, posso voltar para Londres, minhas férias estão no final.

— Quer saber sobre seu pai?

— Não tenho o menor interesse.

E de repente eu entendi em que podia ajudá-la. Foi como se uma voz alheia saísse de minha boca:

— Entenda melhor o sangue que corre nas minhas veias, e no seu coração.

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Era o meu mestre que falava através de mim. Ela voltou a fechar os olhos, e dormiu quase doze horas seguidas.

No dia seguinte eu a conduzi aos arredores de Sibiu, onde tinham feito um museu com casas de toda a região. Pela primeira vez tivera o prazer de preparar seu café-da-manhã.