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Na festa a que pude assistir, peças do esqueleto de duas mulheres que estão enterradas debaixo do altar são retiradas de um relicário e levantadas para abençoar a multidão de caravanas que chegam de todos os cantos da Europa com suas roupas coloridas, suas músicas e instrumentos. Depois, a imagem de Sarah

— com belíssimos mantos, é retirada de um local perto da igreja, já que o Vaticano jamais a canonizou — e levada em procissão até o mar através das ruelas cobertas de rosas. Quatro ciganos, vestidos em roupas tradicionais, colocam as relíquias em um barco cheio de flores, entram na água, e repetem a chegada das fugitivas, e o encontro com Sarah. A partir daí, tudo é música, festa, cantos, e demonstrações de coragem diante de um touro.

Um historiador, Antoine Locadour, me ajudou a completar a matéria com informações interessantes a respeito da Divindade Feminina. Enviei para Dubai as duas páginas escritas para o caderno de turismo do jornal. Tudo que recebi foi uma resposta amável, agradecendo a atenção, sem qualquer outro comentário.

Pelo menos eu havia confirmado que seu endereço existia.

Antoine Locadour, 74 anos, historiador, I.C.P., França 266

É fácil identificar Sarah como mais uma das muitas virgens negras que podem ser encontradas no mundo. Sara-la-Kali, diz a tradição, vinha de uma nobre linhagem, e conhecia os segredos do mundo. Seria, no meu entender, mais uma das muitas manifestações do que chamam a Grande Mãe, a Deusa da Criação.

E não me surpreende que cada vez mais pessoas se interessem pelas tradições pagãs. Por quê? Porque o Deus Pai é sempre associado com o rigor e a disciplina do culto. A Deusa Mãe, pelo contrário, mostra a importância do amor acima de todas as proibições e tabus que conhecemos.

O fenômeno não é novidade: sempre que a religião endurece suas normas, um grupo significativo de pessoas tende a ir em busca de mais liberdade no contato espiritual. Isso aconteceu durante a Idade Média, quando a Igreja Católica limitava-se a criar impostos e construir conventos cheios de luxo; como reação, assistimos ao surgimento de um fenômeno chamado “feitiçaria”, que, apesar de reprimido por causa de seu caráter revolucionário, deixou raízes e tradições que conseguiram sobreviver todos estes séculos.

Nas tradições pagãs, o culto da natureza é mais importante que a reverência aos livros sagrados; a Deusa está em tudo, e tudo faz parte da Deusa. O mundo é apenas uma expressão de sua bondade. Existem muitos sistemas filosóficos — como o taoísmo ou o budismo — que eliminam a idéia da distinção entre o criador e a criatura. As pessoas não tentam mais decifrar o mistério da vida, e sim fazer parte dele; também no taoísmo e no budismo, mesmo sem a figura feminina, o princípio central afirma que “tudo é uma coisa só”.

No culto da Grande Mãe, o que chamamos de “pecado”, geralmente uma transgressão de códigos morais arbitrários, deixa de existir; sexo e costumes são mais livres, porque fazem parte da natureza, e não podem ser considerados como frutos do mal.

O novo paganismo mostra que o homem é capaz de viver sem uma religião instituída, e ao mesmo tempo continuar na busca 267

espiritual para justificar sua existência. Se Deus é mãe, então tudo que é necessário é juntar-se e adorá-la através de ritos que procuram satisfazer sua alma feminina — como a dança, o fogo, a água, o ar, a terra, os cantos, a música, as flores, a beleza.

A tendência vem crescendo de maneira gigantesca nos últimos anos. Talvez estejamos diante de um momento muito importante na história do mundo, quando finalmente o Espírito se integra com a Matéria, os dois se unificam, e se transformam. Ao mesmo tempo, estimo que haverá uma reação muito violenta das instituições religiosas organizadas, que começam a perder fiéis.

O fundamentalismo deve crescer, e instalar-se em todos os cantos.

Como historiador, me contento em coletar dados e analisar esta confrontação entre a liberdade de adorar e a obrigação de obedecer. Entre o Deus que controla o mundo e a Deusa que é parte do mundo. Entre as pessoas que se unem em grupos em que a celebração é feita de modo espontâneo, e aquelas que vão se fechando em círculos onde aprendem o que deve e o que não deve ser feito.

Gostaria de estar otimista, de achar que finalmente o ser humano encontrou seu caminho para o mundo espiritual. Mas os sinais não são tão positivos assim: uma nova perseguição conservadora, como já aconteceu muitas vezes no passado, pode sufocar novamente o culto da Mãe.

Andrea McCain, atriz de teatro

É muito difícil tentar ser imparcial, recontar uma história que começou com admiração e terminou com rancor. Mas vou tentar, vou sinceramente fazer um esforço para descrever a Athena que vi pela primeira vez em um apartamento em Victoria Street.

Tinha acabado de voltar de Dubai, com dinheiro e com vontade de dividir tudo que conhecia a respeito dos mistérios da magia. Desta vez, ficara apenas quatro meses no Oriente Médio: vendeu terrenos para a construção de dois supermercados, ganhou 268

uma gigantesca comissão, disse que conseguira dinheiro para cuidar de si e de seu filho nos três anos seguintes, e poderia voltar a trabalhar sempre que quisesse — agora era o momento de aproveitar o presente, viver o que lhe restava da juventude, e ensinar tudo o que tinha aprendido.

Me recebeu sem muito entusiasmo:

— O que deseja?

— Faço teatro e iremos montar uma peça sobre o rosto feminino de Deus. Soube por um amigo jornalista que você esteve no deserto e nas montanhas dos Bálcãs, junto com os ciganos, e tem informações a respeito.

— Veio até aqui aprender sobre a Mãe apenas para uma peça?

— E você aprendeu por que razão?

Athena parou, me olhou de alto a baixo, e sorriu:

— Está certa. Essa foi minha primeira lição como mestra: ensine a quem desejar aprender. O motivo não importa.

— Como?

— Nada.

— A origem do teatro é sagrada. Começou na Grécia, com hinos a Dionísio, o deus do vinho, do renascimento, e da fertilidade. Mas acredita-se que desde épocas remotas os seres humanos tinham um ritual onde fingiam ser outras pessoas, e desta maneira procuravam a comunicação com o sagrado.

— Segunda lição, obrigado.

— Não estou entendendo. Vim aqui para aprender, não para ensinar.

Aquela mulher estava começando a me deixar irritada.

Talvez estivesse sendo irônica.

— Minha protetora...

— Protetora?

— ... um dia explico. Minha protetora disse que só iria aprender o que preciso, se fosse provocada. E, desde que voltei de Dubai, você foi a primeira pessoa que apareceu para me mostrar isso. Faz sentido o que ela disse.

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Expliquei que, no processo de pesquisa para a peça de teatro, tinha ido de um mestre a outro. Mas nada havia de excepcional em seus ensinamentos — exceto o fato de que minha curiosidade ia aumentando à medida que eu progredia no assunto.

Disse também que as pessoas que lidavam com o tema pareciam confusas, e não sabiam exatamente o que queriam.

— Como por exemplo?

O sexo, por exemplo. Em alguns dos lugares a que fui, era completamente proibido. Em outros, não apenas era totalmente livre, como às vezes estimulavam orgias. Ela pediu mais detalhes

— e eu não compreendi se fazia isso para me testar, ou se não conhecia nada do que estava se passando.

Athena continuou antes que eu pudesse responder sua pergunta.

— Quando você dança, sente desejo? Sente que está provocando uma energia maior? Quando você dança, existem momentos em que deixa de ser você?

Fiquei sem saber o que dizer. Na verdade, nas boates e nas festas de amigos, a sensualidade estava sempre presente na dança — eu começava por provocar, gostava de ver os olhares de desejo dos homens, mas à medida que a noite avançava parecia entrar mais em contato comigo, o fato de estar seduzindo ou não alguém deixava de fazer muita diferença...