— “E o maior mérito não é daquele que oferece, mas do que recebe sem se sentir devedor. O homem dá pouco quando dispõe apenas dos bens materiais que possui; mas dá muito quando entrega a si mesmo.”
Dizia tudo isso sem sorrir. Eu parecia estar conversando com uma esfinge.
— É do mesmo poeta que você citou — aprendi na escola, mas não preciso do livro onde escreveu isso; guardei suas palavras no meu coração.
Bebeu um pouco mais. Eu fiz a mesma coisa. Agora não me cabia ficar perguntando se tinha aceito ou não; eu me sentia mais leve.
— Talvez você esteja certa; vou doar meus livros a uma biblioteca pública, guardarei apenas alguns que realmente torno a reler.
— É sobre isso que quer falar agora?
— Não. Não sei como continuar a conversa.
— Pois então jantemos e apreciemos a comida. Parece uma boa idéia?
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Não, não parecia uma boa idéia; eu queria escutar algo diferente. Mas tinha medo de perguntar, de modo que continuei falando de bibliotecas, de livros, de poetas, falando compulsivamente, arrependido de ter pedido tantos pratos — era eu quem desejava sair correndo, porque não sabia como continuar aquele encontro.
No final, ela me fez prometer que iria ao teatro assistir a sua primeira aula, e aquilo foi para mim um sinal. Ela precisava de mim, tinha aceito o que eu inconscientemente sonhava lhe oferecer desde que a vi dançando em um restaurante na Transilvânia, mas que só aquela noite havia sido capaz de compreender.
Ou acreditar, como dizia Athena.
Andrea McCain, atriz
Claro que sou culpada. Se não fosse por minha causa, Athena jamais teria chegado ao teatro naquela manhã, juntado o grupo, pedido que todos nós nos deitássemos no chão do palco, e começado um relaxamento completo, que incluía respiração e consciência de cada parte do corpo.
“Relaxem agora as coxas...”
Todos obedecíamos, como se estivéssemos diante de uma deusa, de alguém que sabia mais que todos nós juntos, embora já tivéssemos feito este tipo de exercício centenas de vezes. Todos estávamos curiosos do que viria depois de
“... agora relaxe a face, respire fundo”, etc.
Será que acreditava que nos estava ensinando alguma coisa nova? Estávamos esperando uma conferência, uma palestra!
Preciso me controlar, voltemos ao passado; relaxamos, e veio aquele silêncio, que nos desnorteou por completo. Conversando depois com alguns companheiros, todos tivemos a sensação que o exercício tinha acabado; era hora de sentar-se, olhar em volta, 284
mas ninguém fez isso. Permanecemos deitados, em uma espécie de meditação forçada, por quinze intermináveis minutos.
Então, sua voz se fez de novo ouvir.
— Tiveram tempo de duvidar de mim. Um ou outro demonstrou impaciência. Mas agora vou pedir apenas uma coisa: quando eu contar até três, levantem-se e sejam diferentes.
“Não digo: seja uma outra pessoa, um animal, uma casa.
Evitem fazer tudo que aprenderam nos cursos de dramaturgia — não estou pedindo que sejam atores e demonstrem suas qualidades.
Estou mandando que deixem de ser humanos, e se transformem em algo que não conhecem.“
Estávamos de olhos fechados, deitados no chão, sem que um pudesse saber como o outro estava reagindo. Athena jogava com essa incerteza.
— Vou dizer algumas palavras, e vão associar imagens a estes comandos. Lembrem-se que estão intoxicados de conceitos, e se eu dissesse “destino”, talvez começassem a imaginar suas vidas no futuro. Se eu dissesse “vermelho”, iriam fazer qualquer interpretação psicanalítica. Não é isso que eu quero. Eu quero que sejam diferentes, como disse.
Não conseguia sequer explicar direito o que desejava.
Como ninguém reclamou, tive certeza que estavam tentando ser educados, mas, quando acabasse a tal “conferência”, jamais tornariam a convidar Athena. E ainda iriam me dizer como eu era ingênua por tê-la procurado.
— Eis a primeira palavra: sagrado.
Para não morrer de tédio, resolvi fazer parte do jogo: imaginei minha mãe, meu namorado, meus futuros filhos, uma carreira brilhante.
— Façam um gesto que signifique “sagrado”.
Cruzei meus braços no peito, como se estivesse abraçando todos os entes queridos. Soube mais tarde que a maior parte abriu os braços em forma de cruz, e uma das meninas abriu as pernas, como se estivesse fazendo amor.
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— Voltem a relaxar. Voltem a esquecer tudo, e mantenham os olhos fechados. Não estou criticando nada, mas, pelos gestos que vi, vocês estão dando uma forma ao que consideram sagrado. Eu não quero isso — peço que, na próxima palavra, não tentem defini-la como ela se manifesta neste mundo.
Abram seus canais, deixem que esta intoxicação de realidade se afaste. Sejam abstratos; e aí estarão entrando no mundo para onde os estou guiando.
A última frase soou com tal autoridade, que senti a energia do lugar mudando. Agora a voz sabia a que lugar desejava nos conduzir. Uma mestra, em vez de uma conferencista.
— Terra — disse ela.
De repente entendi do que estava falando. Já não era minha imaginação que contava, mas meu corpo em contato com o solo. Eu era a Terra.
— Façam um gesto que represente Terra.
Não me movi; eu era o solo daquele palco.
— Perfeito — disse ela. — Ninguém se mexeu. Todos, pela primeira vez, experimentaram o mesmo sentimento; em vez de descrever algo, se transformaram na idéia.
De novo ficou em silêncio pelo que imaginei serem longos cinco minutos. O silêncio nos deixava perdidos, incapazes de distinguir se ela não sabia como continuar, ou se não conhecia nosso intenso ritmo de trabalho.
— Vou dizer uma terceira palavra.
Deu uma pausa
— Centro.
Eu senti — e isso foi um movimento inconsciente — que toda a minha energia vital ia para o umbigo, e ali brilhava como se fosse uma luz amarela. Aquilo me deu medo: se alguém o tocasse, eu poderia morrer.
— Gesto de centro!
A frase veio como um comando. Imediatamente coloquei as mãos no ventre, para me proteger.
— Perfeito — disse Athena. — Podem sentar-se.
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Abri os olhos e notei as luzes do palco lá em cima, distantes, apagadas. Esfreguei o rosto, levantei-me do chão, notando que meus companheiros estavam surpresos.
— É isso a conferência? — disse o diretor.
— Pode chamar de conferência.
— Obrigado por ter vindo. Agora, se nos der licença, temos que começar os ensaios da próxima peça.
— Mas não terminei ainda.
— Deixamos para outro momento.
Todos pareciam confusos com a reação do diretor.
Depois da dúvida inicial, penso que estávamos gostando — era algo diferente, nada de representar coisas ou pessoas, nada de imaginar imagens como maçãs, velas. Nada de sentar-se em círculo de mãos dadas, e fingir que se está praticando um ritual sagrado.
Era simplesmente algo absurdo, e queríamos saber onde iria parar.
Athena, sem demonstrar qualquer emoção, abaixou-se para pegar sua bolsa. Neste momento, escutamos uma voz na platéia:
— Que maravilha!
Heron tinha vindo com ela. E o diretor tinha medo dele, porque conhecia os críticos de teatro do jornal onde trabalhava, e tinha excelentes relações na mídia.
— Vocês deixaram de ser indivíduos, e passaram a ser idéias! Que pena que estão ocupados, mas não se preocupe, Athena, encontraremos um outro grupo onde eu possa ver como termina sua conferência. Tenho meus contatos.
Eu ainda me lembrava da luz viajando por todo o meu corpo, e concentrando-se no meu umbigo. Quem era aquela mulher?
Será que meus companheiros tinham experimentado a mesma coisa?
— Um momento — disse o diretor, olhando a cara de surpresa de todos os que estavam ali. — Quem sabe podemos adiar os ensaios hoje, e...
— Não devem. Porque eu tenho que voltar ao jornal agora, para escrever sobre esta mulher. Continuem fazendo o que sempre fizeram: acabo de descobrir uma excelente história.