— Não devem. Porque eu tenho que voltar ao jornal agora, para escrever sobre esta mulher. Continuem fazendo o que sempre fizeram: acabo de descobrir uma excelente história.
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Se Athena parecia perdida no meio da discussão dos dois homens, não demonstrou nada. Desceu do palco, e acompanhou Heron. Nos viramos para o diretor, perguntando por que havia reagido assim.
— Com todo o respeito por Andrea, acho que nossa conversa sobre sexo no restaurante foi muito mais rica do que estas bobagens que acabamos de fazer. Repararam como ela ficava em silêncio? Não tinha idéia de como continuar!
— Mas eu senti uma coisa estranha — disse um dos atores mais velhos. — Na hora que ela disse “centro”, pareceu que toda a minha força vital se concentrava em meu umbigo. Nunca havia experimentado isso.
— Você... tem certeza? — era uma atriz que, pelo tom de suas palavras, havia sentido a mesma coisa.
— Essa mulher parece uma bruxa — disse o diretor, interrompendo a conversa. — Vamos voltar ao trabalho.
Começamos com alongamento, aquecimento, meditação, tudo conforme o manual. Em seguida, algumas improvisações, e logo partimos para a leitura do novo texto. Aos poucos, a presença de Athena parecia estar se dissolvendo, tudo voltava a ser o que era
— um teatro, um ritual criado pelos gregos há milênios, onde costumávamos fingir que éramos gente diferente.
Mas era apenas representação. Athena era diferente, e eu estava disposta a tornar a vê-la, principalmente depois do que o diretor dissera a seu respeito.
Heron Ryan, jornalista
Sem que soubesse, eu havia seguido os mesmos passos que sugerira aos atores, obedecido a tudo que mandara — sendo que a única diferença é que mantinha os olhos abertos para acompanhar o que acontecia no palco. No momento em que dissera “gesto de centro”, eu colocara a mão no meu umbigo, e, para minha surpresa, 288
vi que todos, inclusive o diretor, tinham feito a mesma coisa. O
que era aquilo?
Naquela tarde precisava escrever um artigo
aborrecidíssimo sobre a visita de um chefe de Estado à Inglaterra, uma verdadeira prova de paciência. No intervalo dos telefonemas, para distrair-me, resolvi perguntar a colegas de redação que gesto fariam se eu pedisse para designar “centro”. A maior parte brincou, comentando sobre partidos políticos. Um apontou para o centro do planeta. Outro colocou a mão no coração.
Ninguém, mas absolutamente ninguém mesmo, entendia o umbigo como o centro de qualquer coisa.
Finalmente, uma das pessoas com quem consegui conversar naquela tarde, me explicou algo interessante. Ao voltar para casa, Andrea já estava de banho tomado, tinha colocado a mesa, e me esperava para jantar. Abriu uma garrafa de vinho caríssimo, encheu duas taças, e me estendeu uma.
— Então, como foi o jantar ontem à noite?
Por quanto tempo um homem pode conviver com uma mentira? Não queria perder a mulher que estava diante de mim, que me fazia companhia nas horas difíceis, que sempre estava ao meu lado quando me sentia incapaz de encontrar um sentido para minha vida. Eu a amava, mas, no mundo louco em que estava mergulhando sem saber, meu coração estava distante, procurando adaptar-se a algo que talvez conhecesse, mas que não podia aceitar: ser grande o suficiente para duas pessoas.
Como eu jamais arriscaria deixar o certo pela dúvida, procurei minimizar o que se passara no restaurante.
Principalmente porque não acontecera absolutamente nada, além de trocas de versos de um poeta que havia sofrido muito por amor.
— Athena é uma pessoa difícil de se conviver.
Andrea riu.
— E justamente por isso deve ser interessantíssima para os homens; desperta este instinto de proteção que vocês têm, e que cada vez usam menos.
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Melhor mudar de assunto. Sempre tive a certeza que as mulheres têm uma capacidade sobrenatural para saber o que se passa na alma de um homem. São todas feiticeiras.
— Andei fazendo algumas pesquisas sobre o que aconteceu hoje no teatro. Você não sabe, mas eu estava de olhos abertos durante os exercícios.
— Você sempre está de olhos abertos; acho que faz parte de sua profissão. E vai falar dos momentos em que todos se comportaram da mesma maneira. Conversamos muito sobre isso no bar, depois que saímos dos ensaios.
— Um historiador me disse que, no templo da Grécia onde se profetizava o futuro ( N.R.: Delfos, dedicado a Apolo) havia uma pedra em mármore, justamente chamada “umbigo”. Relatos da época contam que ali estava o centro do planeta. Fui para os arquivos do jornal fazer algumas pesquisas: em Petra, na Jordânia, existe outro “umbigo cônico”, simbolizando não apenas o centro do planeta, mas do universo inteiro. Tanto o de Delfos como o de Petra procuram mostrar o eixo por onde transita a energia do mundo, marcando de modo visível algo que se manifesta apenas no plano, digamos, “invisível”. Jerusalém é chamada também de umbigo do mundo, como uma ilha no oceano Pacífico, e outro lugar que esqueci — porque jamais associei uma coisa com outra.
— A dança!
— O que você está dizendo?
— Nada.
— Eu sei o que você está dizendo: as danças orientais do ventre, as mais antigas que se tem notícia, e onde tudo gira em torno do umbigo. Quis evitar o assunto, porque eu lhe contei que na Transilvânia tinha visto Athena dançar. Ela estava vestida, embora...
— ... embora o movimento começasse no umbigo, para só então espalhar-se pelo resto do corpo.
Tinha razão.
Melhor mudar de assunto de novo, conversar sobre teatro, sobre as coisas aborrecidas do jornalismo, beber um 290
pouco, terminar na cama fazendo amor enquanto começava a chover lá fora. Percebi que, no momento do orgasmo, o corpo de Andrea girava em torno do umbigo — eu já tinha visto isso centenas de vezes, e nunca prestara atenção.
Antoine Locadour, historiador
Heron começou a gastar uma fortuna em telefonemas para a França, pedindo que conseguisse todo o material até aquele final de semana, insistindo nesta história de umbigo — que me parecia a coisa mais desinteressante e menos romântica do mundo.
Mas, enfim, ingleses não costumam ver as mesmas coisas que os franceses vêem; e, em vez de fazer perguntas, procurei pesquisar o que a ciência dizia a respeito.
Logo percebi que conhecimentos históricos não eram suficientes — eu podia localizar um monumento aqui, um dólmen ali, mas o curioso é que as culturas antigas pareciam concordar em torno do mesmo tema, e usar a mesma palavra para definir os lugares que considerava sagrados. Nunca tinha prestado atenção nisso, e o assunto passou a me interessar. Quando vi o excesso de coincidências, fui em busca de algo complementar: o comportamento humano e suas crenças.
A primeira explicação, mais lógica, logo foi descartada: através do cordão umbilical somos alimentados, ele é o centro da vida. Um psicólogo logo me disse que esta teoria não fazia o menor sentido: a idéia central do homem é sempre “cortar”
o cordão, e a partir daí o cérebro ou o coração tornam-se símbolos mais importantes.
Quando estamos interessados em um assunto, tudo a nossa volta parece referir-se a ele (os místicos chamam de
“sinais”, os céticos de “coincidência”, e os psicólogos de “foco concentrado”, embora eu ainda precise definir como os historiadores devem referir-se ao tema). Certa noite, minha filha adolescente apareceu em casa com um piercing no umbigo.
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— Por que fez isso?
— Porque me deu vontade.
Explicação absolutamente natural e verdadeira, mesmo para um historiador que precisa achar um motivo para tudo. Quando entrei em seu quarto, vi um pôster de sua cantora favorita: o ventre estava de fora, e o umbigo, também naquela foto na parede, parecia ser o centro do mundo.
Telefonei para Heron, e perguntei por que estava tão interessado. Pela primeira vez me contou sobre o que se passara no teatro, como as pessoas haviam reagido de maneira espontânea, mas inesperada, a um comando. Impossível arrancar mais informações de minha filha, de modo que resolvi consultar especialistas.