“Sinto-me miserável, culpada, porque Deus me abençoou com tragédias que consegui superar, e milagres que honrei, e não estou jamais contente! Sempre quero mais. Não precisava ter ido àquele teatro, e acrescentar uma frustração à minha lista de vitórias!”
— Você acha que agiu errado?
Ela parou, e me olhou espantada.
— Por que pergunta isso?
Eu apenas aguardei a resposta.
— Eu agi certo. Estava com um jornalista quando entrei ali, sem ter a menor noção do que ia fazer, e de repente as coisas começaram a surgir como se viessem do nada. Sentia a presença da Grande Mãe ao meu lado, me guiando, me instruindo, fazendo com que minha voz passasse uma segurança que, no íntimo, eu não possuía.
— Então por que está reclamando?
— Porque ninguém entendeu!
— E isso é importante? Tão importante que a faça vir até a Escócia para insultar-me diante de todo mundo?
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— Claro que é importante! Se você é capaz de tudo, se sabe que está fazendo a coisa certa, como é que não consegue pelo menos ser amada e admirada por isso?
Esse era o problema. Peguei-a pela mão e a conduzi ao mesmo quarto onde, semanas antes, havia contemplado a vela. Pedi que se sentasse e procurasse acalmar-se um pouco — embora estivesse certa de que o chá estava surtindo efeito. Fui ao meu quarto, peguei um espelho circular, e coloquei-o diante de seu rosto.
— Você tem tudo, e lutou por cada polegada de seu território. Agora veja aqui as suas lágrimas. Veja seu rosto, e a amargura que ele demonstra. Procure olhar a mulher que está no espelho; desta vez não ria, mas tente compreendê-la.
Dei tempo suficiente para que pudesse seguir minhas instruções. Quando notei que estava entrando no transe desejado, segui adiante:
— Qual é o segredo da vida? Pois chamemos isso de
“graça”, ou “bênção”. Todos procuram estar satisfeitos com o que têm. Menos eu. Menos você. Menos algumas poucas pessoas que, infelizmente, teremos que nos sacrificar um pouco, em nome de uma coisa maior.
“Nossa imaginação é maior que o mundo que nos cerca, vamos além de nossos limites. Antigamente, chamavam isso de
‘bruxaria’ — mas ainda bem que as coisas mudaram, ou a esta hora já estaríamos na fogueira. Quando pararam de queimar as mulheres, a ciência encontrou uma explicação, normalmente chamada de
‘histeria feminina’; embora não cause a morte pelo fogo, termina provocando uma série de problemas, principalmente no trabalho.
“Entretanto, não se preocupe, em breve irão chamar de
‘sabedoria’. Mantenha os olhos fixos no espelho: quem está vendo?
— Uma mulher.
— E o que está além da mulher?
Ela vacilou um pouco. Eu insisti, e terminou respondendo:
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— Outra mulher. Mais verdadeira, mais inteligente que eu. Como se fosse uma alma que não me pertencesse, mas que fizesse parte de mim.
— Isso mesmo. Agora vou pedir para que imagine um dos símbolos mais importantes da alquimia: uma serpente que faz um círculo e devora a própria cauda. Consegue imaginar isso?
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Assim é a vida de pessoas como eu e como você. Elas se destroem e se constroem todo o tempo. Tudo na sua existência ocorreu desta maneira: do abandono ao encontro, do divórcio ao novo amor, da filial do banco ao deserto. Apenas uma coisa permanece intacta — seu filho. Ele é o fio condutor de tudo, respeite isso.
De novo começou a chorar. Mas era um tipo diferente de lágrimas.
— Você veio até aqui porque viu um rosto feminino na fogueira. Este rosto é o mesmo que está no espelho agora, e procure honrá-lo. Não se deixe oprimir pelo que os outros pensam, já que, em alguns anos, ou em algumas décadas, ou em alguns séculos, este pensamento será modificado. Viva agora o que as pessoas só irão viver no futuro.
“O que você quer? Você não pode querer ser feliz, porque isso é fácil e aborrecido. Você não pode querer apenas amar, porque isso é impossível. O que você quer? Você quer justificar sua vida — vivê-la da maneira mais intensa possível.
Isso é ao mesmo tempo uma armadilha e um êxtase. Procure estar atenta ao perigo, e viva a alegria, a aventura de ser a Mulher que está além da imagem refletida no espelho.”
Seus olhos se fecharam, mas sei que minhas palavras haviam penetrado em sua alma, e ali permaneceriam.
— Se quiser arriscar-se e continuar a ensinar, faça isso. Se não quiser, saiba que já foi muito mais além do que a maioria das pessoas.
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Seu corpo começou a relaxar. Segurei-a nos braços antes que caísse, e ela dormiu com a cabeça apoiada em meus seios.
Tentei sussurrar algumas coisas, porque eu já havia passado pelas mesmas etapas, e sei o quanto era difícil — assim tinha me dito meu protetor, e assim eu tinha experimentado em minha própria carne. Mas o fato de ser difícil não tornava esta experiência menos interessante.
Que experiência? Viver como ser humano e como divindade. Passar da tensão ao relaxamento. Do relaxamento, ao transe. Do transe, ao contato mais intenso com as pessoas. Deste contato, de novo à tensão, e assim por diante, como a serpente que come a própria cauda.
Nada fácil — principalmente porque exige um amor incondicional, que não teme o sofrimento, a rejeição, a perda.
Mas, para quem bebe uma vez desta água, é impossível tornar a matar sua sede em outras fontes.
Andrea McCain, atriz
— Outro dia você falou de Gaia, que criou a si mesma, e teve um filho sem precisar de homem. Disse, com toda razão, que a Grande Mãe terminou cedendo lugar aos deuses masculinos. Mas se esqueceu de Hera, uma das descendentes de sua deusa favorita.
“Hera tem mais importância, porque é mais prática.
Governa os céus e a terra, as estações do ano e as tempestades.
Segundo os mesmos gregos que você citou, a Via Láctea que vemos nos céus é composta do leite que jorrou de seu seio. Um belo seio, diga-se de passagem, porque o todo poderoso Zeus mudou de forma, transformou-se em um pássaro, apenas para poder beijá-lo sem ser rejeitado.”
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Caminhávamos por uma grande loja de departamentos em Knightsbridge. Telefonei dizendo que gostaria de conversar um pouco, e ela me convidou para ver as liquidações de inverno —
teria sido muito mais simpático tomarmos um chá juntas, ou almoçarmos em um restaurante tranqüilo.
— Seu filho pode perder-se nesta multidão.
— Não se preocupe. Continue o que estava contando.
— Hera descobriu o truque, e obrigou Zeus a casar-se.
Mas, logo depois da cerimônia, o grande rei do Olimpo voltou à sua vida de playboy, seduzindo todas as deusas ou humanas que passavam diante dele. Hera permaneceu fieclass="underline" em vez de colocar a culpa em seu marido, dizia que as mulheres deviam se comportar melhor.
— Não é isso que todas nós fazemos?
Não sabia onde desejava chegar, de modo que continuei como se não tivesse escutado:
— Até que resolveu pagar na mesma moeda, encontrar um deus ou um homem e levar para a cama. Será que não podemos parar um pouco e tomar um café?
Mas Athena acabara de entrar em uma loja de lingerie.
— Esta é bonita? — me perguntou, mostrando um provocante conjunto de calcinha e sutiã da cor da pele, feito em tricô.
— Muito. Quando estiver usando, alguém vai ver?
— Claro — ou você acha que sou santa? Mas continue o que estava mesmo dizendo sobre Hera.
— Zeus ficou assustado com seu comportamento. Mas agora, já independente, Hera pouco se preocupava com seu casamento. Você tem mesmo um namorado?
Ela olhou para os lados. Só quando viu que o menino não podia escutar-nos, foi que respondeu de maneira monossilábica: