“melhorou minha vida”, telefono para especialistas em radiação e energia. Descubro que um total de 9 milhões de pessoas no mundo inteiro foram afetadas diretamente pelo desastre, inclusive de 3
a 4 milhões de crianças. As trinta mortes se transformaram, segundo o especialista John Gofmans, em 475 mil casos de câncer fatais, e um número igual de câncer não fatais.
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Um total de 2 mil cidades e vilarejos foram
simplesmente riscados do mapa. Segundo o Ministério da Saúde da Bielo-Rússia, o índice de câncer na tiróide no país deve aumentar consideravelmente entre 2005 e 2010, como conseqüência da radiatividade que ainda continua a fazer efeito. Outro especialista me explica que além destas 9 milhões de pessoas diretamente expostas à radiação, mais 65 milhões foram indiretamente afetadas através do consumo de alimentos contaminados, em muitos países do mundo.
É um assunto sério, que merece ser tratado com respeito. No final do dia volto à sala do secretário de redação e sugiro que eu vá visitar a cidade apenas no dia do aniversário do acidente — até lá posso fazer mais pesquisas, ouvir mais especialistas, e ver como o governo inglês acompanhou a tragédia.
Ele concorda.
Ligo para Athena — afinal ela diz que namora alguém da Scotland Yard, e este é o momento de lhe pedir um favor, já que Chernobyl não é um assunto classificado como secreto, e a União Soviética não existe mais. Ela promete que irá conversar com o seu “namorado”, mas diz que não garante ter as respostas que desejo.
Diz também que está partindo para a Escócia no dia seguinte, retornando apenas para a reunião do grupo.
— Que grupo?
O grupo, responde. Então agora aquilo vai transformar-se em rotina? Quando poderemos nos encontrar, conversar, esclarecer as coisas soltas no ar?
Mas ela já desligou. Volto para casa, vejo os noticiários, janto sozinho, vou buscar Andrea no teatro. Chego a tempo de assistir ao final da peça e, para minha surpresa, parece que a pessoa que está ali no palco não é a mesma com quem convivi durante quase dois anos; há algo de mágico em seus gestos, os monólogos e diálogos saem com uma intensidade com a qual não estou acostumado. Estou vendo uma estranha, uma mulher que 323
desejaria ter ao meu lado — e me dou conta que a tenho ao meu lado, não é de maneira nenhuma uma estranha para mim.
— Como foi sua conversa com Athena? — pergunto na volta para casa.
— Foi bem. E como está o trabalho?
Mudou de assunto. Conto que fui promovido, falo de Chernobyl, e ela não demonstra muito interesse. Começo a achar que estou perdendo o amor que tinha, e não ganhei o amor que esperava. Entretanto, assim que chegamos ao apartamento ela me convida para tomarmos banho juntos, e logo estamos entre os lençóis. Antes, ela colocou no volume máximo a tal música de percussão (explica que conseguiu uma cópia), e disse que eu não pensasse nos vizinhos — a gente se preocupava demais com eles, e não vivia jamais nossas vidas.
O que ocorre, dali por diante, é algo que ultrapassa minha compreensão. Será que a mulher que, neste momento, faz amor comigo de uma maneira absolutamente selvagem, tinha descoberto finalmente sua sexualidade — e isso havia sido ensinado ou provocado por outra mulher?
Porque, enquanto me agarrava com uma violência nunca vista, dizia sem parar:
— Hoje eu sou seu homem, e você é minha mulher.
E ali ficamos por quase uma hora, e experimentei coisas que nunca tinha ousado antes. Em determinados momentos tive vergonha, vontade de pedir que parasse, mas ela parecia estar com pleno domínio da situação, eu me entreguei — porque não tinha escolha. E o que é pior, tinha muita curiosidade.
No final, estava exausto, mas Andrea parecia com mais energia que antes.
— Antes de dormir, quero que saiba uma coisa — disse ela. — Se você for adiante, o sexo lhe dará possibilidade de fazer amor com os deuses e as deusas. Foi isso que você experimentou hoje. Quero que vá dormir sabendo que eu despertei a Mãe que estava em você.
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Tive vontade de perguntar se havia aprendido aquilo com Athena, mas não tive coragem.
— Diga-me que gostou de ser mulher por uma noite.
— Gostei. Não sei se gostaria sempre, mas foi algo que me assustou e me alegrou ao mesmo tempo.
— Diga-me que sempre quis experimentar o que experimentou.
Uma coisa é deixar-se levar pela situação, a outra é comentar friamente o assunto. Eu não disse nada — embora não duvidasse que ela soubesse a resposta.
— Pois bem — continuou Andrea. — Isso tudo estava dentro de mim e eu não sabia. E estava dentro de mim a máscara que caiu hoje quando eu estava no palco: você notou algo diferente?
— Claro. Irradiava uma luz especial.
— Carisma: a força divina que se manifesta no homem e na mulher. O poder sobrenatural que não precisamos mostrar para ninguém, porque todos conseguem enxergar, até os menos sensíveis.
Mas só acontece depois que ficamos nus, morremos para o mundo, e renascemos para nós mesmos. Ontem à noite, eu morri. Hoje, quando pisei o palco e vi que fazia exatamente o que havia escolhido, eu renasci de minhas cinzas.
“Porque eu sempre andei tentando ser quem era, mas não conseguia. Tentava sempre impressionar os outros, tinha conversas inteligentes, agradava meus pais e ao mesmo tempo usava todos os artifícios para conseguir fazer as coisas que gostaria. Eu sempre abri meu caminho com sangue, lágrimas, força de vontade — mas ontem entendi que escolhi o processo errado. O meu sonho não requer nada disso, apenas que eu me entregue a ele, e morda os dentes se achar que estou sofrendo, porque o sofrimento passa.
— Por que está me dizendo isso?
— Deixe-me terminar. Neste percurso onde o sofrimento parecia ser a única regra, eu lutei por coisas que não adianta lutar. Como amor, por exemplo: ou a gente sente, ou não há força no mundo que consiga provocá-lo.
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“Podemos fingir que amamos. Podemos nos acostumar com o outro. Podemos viver uma vida inteira de amizade, cumplicidade, criar uma família, ter sexo todas as noites, ter orgasmo, e mesmo assim sentir que há um vazio patético em tudo isso, alguma coisa importante está faltando. Em nome do que havia aprendido sobre as relações entre um homem e uma mulher, procurei lutar por coisas que não valiam tanto a pena. E isso inclui você, por exemplo.
“Hoje, enquanto fazíamos amor, enquanto eu dava o máximo, e percebia que você também estava dando o seu melhor, entendi que seu melhor já não me interessa mais. Vou dormir ao seu lado, e amanhã estou indo embora. O teatro é meu ritual, ali eu posso expressar e desenvolver o que quero.”
Comecei a me arrepender de tudo — de ter ido à Transilvânia para cruzar com uma mulher que podia estar destruindo minha vida, provocado o primeiro encontro do “grupo”, confessado meu amor em um restaurante. Naquele momento, odiei Athena.
— Sei o que você está pensando — disse Andrea. — Que sua amiga me fez uma lavagem cerebral; não é nada disso.
— Eu sou um homem, embora hoje tenha me comportado na cama como mulher. Eu sou uma espécie em extinção, porque não vejo muitos homens ao meu redor. Poucas pessoas arriscam o que eu arrisco.
— Tenho certeza, e isso faz com que o admire. Mas será que você não vai me perguntar quem eu sou, o que quero, o que desejo?
Perguntei.
— Quero tudo. Quero a selvageria e a ternura. Quero incomodar os vizinhos e procurar acalmá-los. Não quero mulheres na cama, mas quero homens, verdadeiros homens — como você, por exemplo. Que me amem ou que me usem, isso não tem importância — o meu amor é maior que isso. Quero amar livremente, e quero deixar que as pessoas à minha volta façam a mesma coisa.
“Finalmente: tudo que conversei com Athena foi sobre as coisas simples que despertam a energia reprimida. Como fazer 326
amor, por exemplo. Ou andar na rua repetindo ‘eu estou aqui e agora’. Nada de especial, nenhum ritual secreto; a única coisa que fazia de nosso encontro algo relativamente incomum, é que as duas estavam nuas. A partir de agora, ela e eu nos veremos sempre nas segundas-feiras, e se eu tiver qualquer coisa a comentar, farei isso depois da sessão — não tenho a menor vontade de ser sua amiga.