“Da mesma maneira, quando ela sente vontade de dividir algo, vai até a Escócia conversar com esta tal de Edda, que pelo visto você também conhece, e nunca me contou.”
— Mas eu não me lembro!
Senti que Andrea estava se acalmando aos poucos.
Preparou duas taças de café, e bebemos juntos. Ela voltou a sorrir, perguntou de novo sobre minha promoção, disse que estava preocupada com as reuniões de segunda-feira, porque naquela manhã soubera que os amigos dos amigos estavam convidando outras pessoas, e o local era pequeno. Eu fazia um esforço incomum para fingir que tudo não tinha passado de um ataque de nervos, uma tensão pré-menstrual, uma crise de ciúmes.
Abracei-a, ela encolheu-se no meu ombro; esperei que dormisse, embora estivesse exausto. Naquela noite, não sonhei com absolutamente nada, não tive qualquer pressentimento.
E na manhã seguinte, quando acordei, vi que as roupas dela não estavam mais lá; a chave de casa estava sobre a mesa, sem nenhum bilhete de despedida.
Deidre O’Neill, conhecida como Edda
As pessoas lêem muitas histórias de bruxas, de fadas, de paranormais, de meninos possuídos por espíritos malignos.
Assistem a muitos filmes com rituais em que pentagramas, espadas, e invocações são feitas. Tudo bem, é preciso deixar que a imaginação funcione, que estas etapas sejam vividas; e quem passa 327
por elas sem se deixar enganar, termina entrando em contato com a Tradição.
A verdadeira Tradição é isso: o mestre jamais diz ao discípulo o que deve fazer. São apenas companheiros de viagem, dividindo a mesma e difícil sensação de “estranhamento” diante das percepções que mudam sem parar, dos horizontes que se abrem, das portas que se fecham, dos rios que às vezes parecem atrapalhar o caminho — e que na verdade não devem ser atravessados, mas percorridos.
A diferença entre mestre e discípulo é apenas uma: o primeiro tem um pouco menos de medo que o segundo. Então, quando se sentam ao redor de uma mesa ou de uma fogueira para conversar, o mais experiente sugere: “por que não faz isso?”. Nunca diz:
“ande por aqui, e irá chegar onde eu cheguei”, já que cada caminho é único, e cada destino é pessoal.
O verdadeiro mestre provoca no discípulo a coragem de desequilibrar seu mundo, embora também ele esteja com receio das coisas que tem encontrado, e mais receio ainda do que lhe reserva a próxima curva.
Eu era uma médica jovem e entusiasmada, que foi para o interior da Romênia em um programa de intercâmbio do governo inglês, procurando ajudar o meu próximo. Parti carregando medicamentos na bagagem, e conceitos na cabeça: tinha idéias claras a respeito de como as pessoas devem se comportar, do que é necessário para ser feliz, dos sonhos que devemos manter acesos dentro de nós, de como as relações humanas precisam ser desenvolvidas. Desembarquei em Bucareste durante aquela sangrenta e delirante ditadura, fui para a Transilvânia como parte de um programa de vacinação em massa dos habitantes do lugar.
Não entendia que estava sendo apenas uma peça a mais em um complicado tabuleiro de xadrez, onde mãos invisíveis manipulavam meu ideal, e tudo aquilo que pensava estar fazendo pela humanidade tinha segundas intenções: estabilizar o governo do filho do ditador, permitir que a Inglaterra vendesse armas em um mercado que era dominado pelos soviéticos.
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Minhas boas intenções logo caíram por terra quando comecei a ver que as vacinas apenas não bastavam, existiam outras doenças grassando na região, eu escrevia sem parar pedindo recursos e não os conseguia — diziam que não me preocupasse além daquilo que me haviam pedido.
Senti-me impotente, revoltada. Conheci a miséria de perto, teria condições de fazer alguma coisa se pelo menos alguém me estendesse umas poucas libras, mas não estavam tanto interessados nos resultados. Nosso governo queria apenas notícias em jornais, de modo que pudesse dizer aos seus partidos políticos ou aos seus eleitores que tinham enviado grupos para diversos lugares do mundo em missão humanitária. Tinham boas intenções —
além de vender armas, claro.
Eu me desesperei; que diabos era este mundo? Certa noite, parti para a floresta gelada blasfemando contra Deus, que era injusto com tudo e com todos. Foi quando eu estava sentada ao pé de um carvalho que o meu protetor se aproximou. Disse que eu podia morrer de frio — respondi que era médica, sabia os limites do corpo, e no momento em que estivesse me aproximando destes limites, voltaria para o acampamento. Perguntei o que ele fazia ali.
— Converso com uma mulher que me ouve, já que os homens ficaram surdos.
Achei que se referia a mim — mas não, a mulher era a própria floresta. Depois de ver aquele homem andando pelo bosque, fazendo gestos e dizendo coisas que era incapaz de compreender, uma certa paz instalou-se no meu coração; afinal de contas, eu não era a única no mundo a ficar falando sozinha. Quando me preparava para voltar, ele tornou a vir ao meu encontro.
— Sei quem você é — disse. - Na aldeia tem fama de uma pessoa boa, sempre bem-humorada e pronta para ajudar os outros, mas eu vejo algo diferente: raiva e frustração.
Sem saber se estava diante de um espião do governo, resolvi dizer tudo que estava sentindo — eu precisava desabafar mesmo correndo o risco de ser presa. Caminhamos juntos em direção 329
ao hospital de campanha onde eu trabalhava; levei-o ao dormitório, que naquele momento estava vazio (meus companheiros se divertiam em uma festa anual que acontecia na cidade), e convidei-o para tomar algo. Ele retirou uma garrafa do bolso:
— Palinka — disse, referindo-se à bebida tradicional do país, cujo teor alcoólico é altíssimo. — Sou eu quem convida.
Bebemos juntos, não percebi que estava ficando cada vez mais embriagada; só me dei conta do meu estado quando tentei ir ao banheiro, tropecei em algo e caí no chão.
— Não se mexa — disse o homem. — Veja bem o que está diante dos seus olhos.
Uma fila de formigas.
— Todos acham que elas são muito sábias. Possuem memória, inteligência, capacidade de organização, espírito de sacrifício. Buscam alimento no verão, guardam para o inverno, e agora saem de novo, nesta primavera gelada, para trabalhar. Se amanhã o mundo fosse destruído por uma guerra atômica, as formigas sobreviveriam.
— Como é que o senhor sabe tudo isso?
— Estudei biologia.
— E por que diabos não trabalha para melhorar o estado do seu povo? O que faz no meio da floresta, falando sozinho com as árvores?
— Em primeiro lugar eu não estava sozinho; além das árvores, você estava me escutando. Mas respondendo à sua pergunta: deixei a biologia para dedicar-me ao trabalho de ferreiro.
Levantei-me com muito custo. A cabeça continuava girando, mas eu estava consciente o bastante para entender a situação daquele pobre coitado. Apesar da universidade, não conseguiu encontrar emprego. Disse que o mesmo acontecia no meu país.
— Não se trata disso; deixei biologia porque queria trabalhar como ferreiro. Desde criança era fascinado por aqueles homens martelando o aço, compondo uma música estranha, espalhando 330
fagulhas ao redor, colocando o ferro em brasa na água, criando nuvens de vapor. Eu era um biólogo infeliz, porque meu sonho era fazer o metal rígido ganhar formas suaves. Até que um dia apareceu um protetor.
— Um protetor?
— Digamos que, ao ver estas formigas fazendo exatamente o que estão programadas para fazer, você exclame: que fantástico! Os guardas são geneticamente preparados para sacrificar-se pela rainha, os operários carregam folhas dez vezes mais pesadas que eles, os engenheiros preparam túneis que resistem a tempestades e inundações. Entram em batalhas mortais com seus inimigos, sofrem pela comunidade, e jamais se perguntam: o que estamos fazendo aqui?