“Os homens tentam imitar a sociedade perfeita das formigas, e eu como biólogo estava cumprindo meu papel, até que alguém apareceu com esta pergunta:
“‘Você está contente com o que faz?’
“‘Eu disse: claro que estou, sou útil ao meu povo.’
“‘E isso basta?’
“Eu não sabia se bastava, mas disse que ele me parecia uma pessoa arrogante e egoísta.
“Ele respondeu: ‘pode ser. Mas tudo que você conseguirá é continuar repetindo o que vem sendo feito desde que o homem se entende por homem — manter as coisas organizadas’.
“‘Mas o mundo progrediu’, respondi. Ele perguntou se eu sabia história — claro que sabia. Fez outra pergunta: há milhares de anos já não éramos capazes de construir grandes edifícios, como as pirâmides? Não éramos capazes de adorar deuses, de tecer, de fazer fogo, de arranjar amantes e esposas, de transportar mensagens escritas? Claro que sim. Mas, embora nos tivéssemos organizado para substituir os escravos gratuitos por escravos com salário hoje em dia, todos os avanços tinham acontecido apenas no campo da ciência. Os seres humanos ainda continuavam com as mesmas perguntas de seus ancestrais. Ou seja —
não tinham evoluído absolutamente nada. A partir deste momento, 331
entendi que aquela pessoa que me fazia tais perguntas era alguém enviado pelo céu, um anjo, um protetor.”
— Por que o chama de protetor?
— Porque me disse que existiam duas tradições: uma que nos faz repetir a mesma coisa através dos séculos. A outra que nos abre a porta do desconhecido. Mas esta segunda tradição é incômoda, desconfortável, e perigosa, porque, se tiver muitos adeptos, terminará destruindo a sociedade que custou tanto para ser organizada tendo como exemplo as formigas. Portanto, esta segunda tradição tornou-se secreta, e só conseguiu sobreviver tantos séculos porque seus adeptos criaram uma linguagem oculta, através de símbolos.
— Você perguntou mais?
— Evidente, porque, embora eu negasse, ele sabia que eu não estava satisfeito com o que fazia. Meu protetor comentou:
“tenho medo de dar passos que não estão no mapa, mas, apesar dos meus terrores, no final do dia a vida me parece muito mais interessante”.
“Insisti sobre a tradição, e ele disse algo como
‘enquanto Deus for apenas homem, teremos sempre alimento para comer e casa para morar. Quando a Mãe finalmente reconquistar sua liberdade, talvez tenhamos que dormir ao relento e viver de amor, ou talvez sejamos capazes de equilibrar emoção e trabalho’.
“O homem que viria a ser meu protetor, me perguntou:
‘se você não fosse biólogo, o que seria?’.
“Eu disse: ‘ferreiro, mas não dá dinheiro’. Ele respondeu: ‘pois quando se cansar de ser o que não é, vá divertir-se e celebrar a vida, batendo com um martelo em um ferro. Com o tempo, descobrirá que isso lhe dará mais do que prazer: lhe dará um sentido’.
“‘Como sigo esta tradição de que você falou?’
“‘Já disse, pelos símbolos’, respondeu ele. ‘Comece fazendo o que quer, e tudo o mais lhe será revelado. Acredite que Deus é mãe, cuida dos seus filhos, jamais deixa que nenhum mal lhe aconteça. Eu fiz isso, e sobrevivi. Descobri que existem 332
outras pessoas que também fazem isso — mas são confundidas com loucas, irresponsáveis, supersticiosas. Procuram na natureza a inspiração que está ali, desde que o mundo é mundo. Construímos pirâmides, mas também desenvolvemos símbolos.’
“Tendo dito isso, foi embora e nunca mais o vi.
“Sei apenas que, a partir daquele momento, os símbolos começaram a aparecer porque meus olhos tinham sido abertos por aquela conversa. Custou muito, mas certa tarde disse à minha família que, embora eu tivesse tudo que um homem sonha, estava infeliz — na verdade, tinha nascido para ser ferreiro. Minha mulher reclamou, dizendo: você que nasceu cigano, que teve que enfrentar tantas humilhações para chegar onde chegou, agora vai querer voltar atrás? Meu filho ficou contentíssimo, porque também gostava de ver os ferreiros em nossa aldeia, e detestava os laboratórios das grandes cidades.
“Passei a dividir meu tempo entre as pesquisas biológicas, e o trabalho de ajudante de um ferreiro. Vivia cansado, mas estava mais alegre que antes. Certo dia, larguei o emprego e montei minha própria ferraria — que deu completamente errado no início; justamente quando eu começava a acreditar na vida, as coisas pioravam sensivelmente. Um dia, estava trabalhando, e percebi que ali, diante de mim, estava um símbolo.
“Recebia o aço não trabalhado, e precisava transformá-
lo em peças para automóveis, máquinas agrícolas, utensílios de cozinha. Como isso é feito? Primeiro, eu aqueço a chapa de aço num calor infernal, até que ela fique vermelha. Em seguida, sem qualquer piedade, eu pego o martelo mais pesado, e aplico vários golpes, até que a peça adquira a forma desejada.
“Logo ela é mergulhada num balde de água fria, e a oficina inteira se enche com o barulho do vapor, enquanto a peça estala e grita por causa da súbita mudança de temperatura.
“Tenho que repetir este processo até conseguir a peça perfeita: uma vez apenas não é suficiente.”
O ferreiro deu uma longa pausa, acendeu um cigarro, e continuou:
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— Às vezes, o aço que chega às minhas mãos não consegue agüentar este tratamento. O calor, as marteladas, e a água fria terminam por enchê-lo de rachaduras. E eu sei que jamais se transformará numa boa lâmina de arado, ou em um eixo de motor. Então, eu simplesmente o coloco no monte de ferro-velho que você viu na entrada da minha ferraria.
Mais uma pausa, e o ferreiro concluiu:
— Sei que Deus está me colocando no fogo das aflições.
Tenho aceitado as marteladas que a vida me dá, e às vezes sinto-me tão frio e insensível como a água que faz sofrer o aço. Mas a única coisa que peço é: “Meu Deus, minha Mãe, não desista, até que eu consiga tomar a forma que espera de mim. Tente da maneira que achar melhor, pelo tempo que quiser — mas jamais me coloque no monte de ferro-velho das almas”.
Quando terminei minha conversa com aquele homem, apesar de bêbada, sabia que minha vida havia mudado. Havia uma tradição por detrás de tudo aquilo que aprendemos, e eu precisava ir era em busca de pessoas que, consciente ou inconscientemente, conseguiam manifestar este lado feminino de Deus. Em vez de ficar praguejando contra meu governo e as manipulações políticas, resolvi fazer o que realmente tinha vontade: curar as pessoas. O
resto não me interessava mais.
Como não tinha os recursos necessários, aproximei-me de mulheres e homens da região, que me guiaram ao mundo das ervas medicinais. Comecei a aprender que existia uma tradição popular que remontava a um passado remotíssimo — era transmitida de geração a geração através da experiência, e não do conhecimento técnico. Com esta ajuda, pude ir muito mais além do que minhas possibilidades permitiam, porque eu não estava ali apenas para cumprir uma tarefa da universidade, ou ajudar meu governo a vender armas, ou fazer propaganda inconsciente de partidos políticos.
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Eu estava ali porque curar as pessoas me deixava contente.
Isso me aproximou da natureza, da tradição oral, e das plantas. De volta à Inglaterra, resolvi conversar com os médicos, e perguntava: “vocês sabem exatamente os remédios que devem receitar, ou... às vezes são ajudados pela intuição?”. A quase totalidade, depois que o gelo da conversa era quebrado, dizia que muitas vezes eram guiados por uma voz, e que quando desrespeitavam seus conselhos, terminavam errando o tratamento.
Evidente que utilizam toda a técnica disponível, mas sabem que existe um canto, um canto escuro, onde estava realmente o sentido da cura, e a melhor decisão a tomar.