Meu protetor desequilibrou meu mundo — embora fosse apenas um ferreiro cigano. Eu costumava ir pelo menos uma vez por ano à sua aldeia, e discutíamos como a vida se abre diante de nossos olhos quando ousamos ver as coisas de modo diferente. Em algumas destas visitas, encontrei outros discípulos seus, e juntos comentávamos nossos medos e nossas conquistas. O protetor dizia: eu também fico apavorado, mas nestas horas descubro uma sabedoria que está além de mim, e sigo adiante.
Ganho hoje uma fortuna como médica em Edimburgo, e ganharia mais dinheiro ainda se resolvesse trabalhar em Londres, mas prefiro aproveitar a vida e ter meus momentos de folga. Faço aquilo que gosto: combino os processos de cura dos antigos, a Tradição Arcana, com as técnicas mais modernas da medicina atual
— a Tradição de Hipócrates. Estou escrevendo um tratado a respeito, e muitas pessoas da comunidade “científica”, ao verem meu texto publicado em uma revista especializada, ousarão dar passos que no fundo sempre quiseram dar.
Não acredito que a cabeça seja a fonte de todos os males; existem doenças. Acho que antibióticos e antivirais foram grandes passos para a humanidade. Não pretendo fazer com que um paciente meu cure apendicite apenas com meditação — o que ele precisa é de uma boa e rápida cirurgia. Enfim, dou meus passos com coragem e medo, procuro técnica e inspiração. E sou prudente 335
o bastante para não ficar falando isso por aí, caso contrário iriam logo me tachar de curandeira, e muitas vidas que eu poderia salvar terminariam sendo perdidas.
Quando estou em dúvida, peço ajuda à Grande Mãe. Nunca me deixou sem resposta. Mas sempre me aconselhou a ser discreta; com toda certeza deu o mesmo conselho à Athena, pelo menos em duas ou três ocasiões.
Mas ela estava fascinada demais pelo mundo que começava a descobrir, e não escutou.
Um jornal londrino, 24 de agosto de 1994
A BRUXA DE PORTOBELLO
LONDRES (copyright Jeremy Lutton) — “Por estas e outras razões eu não acredito em Deus. Veja só como se comportam aqueles que acreditam!” Assim reagiu Robert Wilson, um dos comerciantes de Portobello Road.
A rua, conhecida no mundo inteiro por seus antiquários e sua feira de objetos usados aos sábados, transformou-se ontem à noite em uma praça de guerra, exigindo intervenção de pelo menos cinqüenta policiais do Royal Borough of Kensington and Chelsea para acalmar os ânimos. No final do tumulto, cinco pessoas estavam feridas, embora nenhuma em estado grave. O motivo da batalha campal, que durou quase duas horas, foi uma manifestação convocada pelo Reverendo Ian Buck contra aquilo que chamou de
“culto satânico no coração da Inglaterra”.
Segundo Buck, há seis meses um grupo de pessoas suspeitas não deixava a vizinhança dormir em paz nas noites de segunda-feira, dia em que invocavam o demônio. As cerimônias eram conduzidas pela libanesa Sherine H. Khalil, que se autonomeava Athena, a deusa da sabedoria.
Reunia geralmente duas centenas de pessoas no antigo armazém de cereais da Companhia das Índias, mas a multidão vinha 336
aumentando com o passar do tempo, e nas semanas passadas um grupo igualmente numeroso ficava do lado de fora esperando uma oportunidade para entrar e participar do culto. Vendo que nenhuma de suas reclamações verbais, petições, abaixo-assinados, notas para jornais, havia dado resultado, o reverendo resolveu mobilizar sua comunidade, pedindo que às 19 horas de ontem os seus fiéis se colocassem do lado de fora do armazém, impedindo a entrada dos “adoradores de Satanás”.
“Assim que recebemos a primeira denúncia, mandamos alguém para inspecionar o local, mas não foi encontrado nenhum tipo de droga ou indício de atividade ilícita” — disse um oficial, que preferiu não ser identificado já que acabam de abrir um inquérito para apurar o que aconteceu. — “Como a música sempre era desligada às 10 horas da noite, não havia violações à lei do silêncio, e não podemos fazer nada. A Inglaterra permite a liberdade de culto.”
O Reverendo Buck tem outra versão para o caso:
“Na verdade, esta bruxa de Portobello, esta mestra do charlatanismo, tem contatos com altas esferas do governo, daí a passividade de uma polícia paga com o dinheiro do contribuinte para manter a ordem e a decência. Vivemos em um momento em que tudo é permitido; a democracia está sendo engolida e destruída por causa de sua liberdade ilimitada.”
O pastor afirma que logo no início desconfiou do grupo; haviam alugado um imóvel caindo aos pedaços, e passavam dias inteiros tentando recuperá-lo, “numa clara demonstração de que pertenciam a uma seita, e tinham sido submetidos à lavagem cerebral, porque ninguém trabalha de graça neste mundo”. Ao ser perguntado se os seus fiéis também não se dedicavam a trabalhos caritativos ou de apoio à comunidade, Buck alegou que “o que fazemos é em nome de Jesus”.
Ontem à noite, ao chegar ao armazém onde seus seguidores a aguardavam do lado de fora, Sherine Khalil, seu filho, e alguns de seus amigos foram impedidos de entrar pelos paroquianos do Reverendo Buck, que carregavam cartazes e 337
utilizavam megafones conclamando a vizinhança a juntar-se a eles.
O bate-boca logo degenerou em agressões físicas, e em pouco tempo era impossível controlar ambos os lados.
“Dizem que lutam em nome de Jesus; mas na verdade o que desejam é fazer com que continuemos a não escutar as palavras de Cristo, que dizia ‘todos nós somos deuses’” — afirmou a conhecida atriz Andrea McCain, uma das seguidoras de Sherine Khalil, a Athena. A senhorita McCain recebeu um corte no supercílio direito, foi imediatamente medicada, e deixou o local antes que a reportagem pudesse descobrir mais alguma coisa sobre a sua relação com o culto.
Para a Sra. Khalil, que procurava acalmar seu filho de oito anos logo que a ordem foi restabelecida, tudo que acontece no antigo armazém é uma dança coletiva, seguida da invocação a uma entidade conhecida como Hagia Sofia, a quem são feitas perguntas. A celebração termina com uma espécie de sermão e uma oração coletiva em homenagem à Grande Mãe. O oficial que foi encarregado de apurar as primeiras denúncias confirmou suas palavras.
Pelo que apuramos, a comunidade não possui nome ou registro como sociedade beneficente. Mas, para o advogado Sheldon Williams, isso não é necessário: “estamos em um país livre, as pessoas podem se reunir em recintos fechados para eventos sem fins lucrativos, desde que isso não incentive a quebra de qualquer lei de nosso código civil, como seria a incitação ao racismo, ou consumo de entorpecentes”.
A Sra. Khalil rejeitou enfaticamente qualquer possibilidade de interromper os seus cultos por causa dos distúrbios.
“Formamos um grupo para nos encorajar mutuamente, já que é muito difícil enfrentar sozinhos as pressões da sociedade”, comentou. “Exijo que o seu jornal denuncie esta pressão religiosa que viemos sofrendo ao longo de todos estes séculos. Sempre que não fazemos as coisas de acordo com as religiões instituídas e aprovadas pelo Estado, somos reprimidos — como tentaram fazer 338
hoje. Acontece que antes caminhávamos para o calvário, para as prisões, para as fogueiras, para o exílio. Mas agora temos condições de reagir, e a força será respondida com a força, da mesma maneira que a compaixão também será paga com compaixão.”
Ao ser confrontada com as acusações do Reverendo Buck, ela acusou-o de “manipular seus fiéis, usando a intolerância como pretexto, e a mentira como arma para ações violentas”.
Segundo o sociólogo Arthaud Lenox, fenômenos como este tendem a se repetir nos próximos anos, possivelmente envolvendo confrontações mais sérias entre religiões estabelecidas. “No momento em que a utopia marxista provou sua total incompetência para canalizar os ideais da sociedade, o mundo agora se volta para um despertar religioso, fruto do pavor natural da civilização pelas datas redondas. Entretanto, acredito que, quando o ano 2000 chegar e o mundo continuar existindo, o bom senso prevalecerá, e as religiões voltarão a ser apenas um refúgio para gente mais fraca, que está sempre em busca de guias.”