E, no dia seguinte, o sangue correu de manhã.
Quatro homens foram assassinados. Para mim, era apenas mais uma das eternas batalhas tribais a que meu povo estava acostumado. Para Sherine, não devia ser nada, porque nem sequer mencionou o seu pesadelo da noite anterior.
Entretanto, a partir dessa data, o inferno estava chegando, e até hoje não se afastou mais. No mesmo dia, 26
palestinos foram mortos em um ônibus, como vingança pelo assassinato. Vinte e quatro horas depois, já não se podia caminhar pelas ruas, por causa dos tiros que vinham de todos os lados. As escolas fecharam, Sherine foi trazida às pressas para casa por uma de suas professoras, e a partir daí, todos perderam controle da situação. Meu marido interrompeu sua viagem no meio e voltou para casa, telefonando dias inteiros para os seus amigos do governo, e ninguém conseguia dizer algo que fizesse sentido.
Sherine ouvia os tiros lá fora, os gritos de meu marido dentro de casa, e — para minha surpresa — não dizia uma palavra. Eu tentava sempre lhe dizer que era passageiro, que em breve poderíamos ir de novo à praia, mas ela desviava os olhos e pedia algum livro para ler, ou um disco para ouvir. Enquanto o inferno se instalava aos poucos, Sherine lia e escutava música.
Não quero pensar muito nisso, por favor. Não quero pensar nas ameaças que recebemos, quem estava com a razão, quais 169
eram os culpados e os inocentes. O fato é que, poucos meses depois, quem quisesse atravessar determinada rua, deveria pegar um barco, ir até a ilha de Chipre, tomar outro barco, e desembarcar do outro lado da calçada.
Permanecemos praticamente dentro de casa por quase um ano, sempre esperando a situação melhorar, sempre achando que tudo aquilo era passageiro, o governo iria terminar controlando a situação. Certa manhã, enquanto escutava um disco em sua pequena eletrola portátil, Sherine ensaiou uns passos de dança, e começou a dizer coisas como “vai demorar muito, muito tempo”.
Eu quis interrompê-la, mas meu marido pegou-me pelo braço — vi que estava prestando atenção, e levando a sério as palavras de uma menina. Nunca entendi por que, e até hoje não comentamos o assunto; é um tabu entre nós.
No dia seguinte, ele começou a tomar providências inesperadas; em duas semanas estávamos embarcando para Londres.
Mais tarde saberíamos que, embora não haja estatísticas concretas a respeito, nestes dois anos de guerra civil ( N.R.: 1974 e 1975) morreram em torno de 44 mil pessoas, 180 mil ficaram feridas, milhares desabrigadas. Os combates continuaram por outras razões, o país foi ocupado por forças estrangeiras, e o inferno continua até hoje.
“Vai durar muito tempo”, dizia Sherine. Meu Deus, infelizmente ela tinha razão.
Lukás Jessen-Petersen, 32 anos, engenheiro, ex-marido
Athena já sabia que tinha sido adotada por seus pais quando a encontrei pela primeira vez. Tinha 19 anos e estava pronta para começar uma briga na cafeteria da universidade porque alguém, pensando que ela tinha origem inglesa (branca, cabelos lisos, olhos às vezes verdes, às vezes cinza), fizera algum comentário desfavorável sobre o Oriente Médio.
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Era o primeiro dia de aula; a turma era nova, ninguém conhecia nada a respeito de seus colegas. Mas aquela moça se levantou, segurou a outra pelo colarinho, e começou a gritar feito louca:
— Racista!
Vi o olhar aterrorizado da menina, o olhar excitado dos outros estudantes, sedentos para ver o que acontecia. Como estava um ano na frente daquela turma, previ imediatamente as conseqüências: sala do reitor, queixas, possibilidade de expulsão, inquérito policial sobre racismo, etc. Todo mundo tinha a perder.
— Cala a boca! — gritei sem saber o que estava dizendo.
Não conhecia nenhuma das duas. Não sou o salvador do mundo, e, sinceramente falando, uma briga de vez em quando é estimulante para os jovens. Mas o grito e a reação foram mais fortes que eu.
— Pare com isso! gritei de novo para a moça bonita, que agarrava outra, também bonita, pelo pescoço. Ela me olhou e me fulminou com os olhos. E, de repente, alguma coisa mudou. Ela sorriu — embora ainda mantivesse suas mãos na garganta de sua colega.
— Você esqueceu de dizer: por favor.
Todo mundo riu.
— Pare com isso — pedi. — Por favor.
Ela largou a menina e caminhou em minha direção. Todas as cabeças acompanharam seu movimento.
— Você tem educação. Será que também tem um cigarro?
Estendi o maço, e fomos fumar no campus. Tinha passado da raiva completa ao relaxamento total, e minutos depois estava rindo, comentando o tempo, perguntando se eu gostava deste ou daquele grupo de música. Escutei a sineta que chamava para as aulas, e solenemente ignorei aquilo para o qual tinha sido educado toda minha vida: manter a disciplina. Continuei ali conversando, como se não existisse mais universidade, brigas, 171
cantinas, vento, frio, sol. Existia apenas aquela mulher de olhos cinza na minha frente, dizendo coisas absolutamente desinteressantes e inúteis, capazes de manter-me ali pelo resto de minha vida.
Duas horas depois estávamos almoçando juntos. Sete horas depois estávamos em um bar, jantando e bebendo aquilo que nosso orçamento permitia comer e beber. As conversas foram ficando cada vez mais profundas, e em pouco tempo eu já sabia praticamente toda a sua vida — Athena contava detalhes de sua infância, adolescência, sem que eu fizesse qualquer pergunta.
Mais tarde soube que ela era assim com todo mundo; entretanto, naquele dia, me senti o mais especial de todos os homens da face da terra.
Tinha chegado em Londres como refugiada da guerra civil que estourara no Líbano. O pai, um cristão maronita ( N.R.: ramo da Igreja Católica que, embora submetido à autoridade do Vaticano, não exige o celibato dos padres e utiliza ritos orientais e ortodoxos), fora ameaçado de morte por trabalhar com o governo, e mesmo assim não se decidia exilar-se, até que Athena, ouvindo escondida uma conversa telefônica, decidiu que era hora de crescer, assumir suas responsabilidades de filha, e proteger aqueles que tanto amava.
Ensaiou uma espécie de dança, fingiu que estava em transe (aprendera tudo aquilo no colégio, quando estudava a vida de santos) e começou a dizer coisas. Não sei como uma criança pode fazer com que adultos tomem decisões baseadas em seus comentários, mas Athena afirmou que fora exatamente assim, o pai era supersticioso, estava absolutamente convencida que salvara a vida de sua família.
Chegaram aqui como refugiados, mas não como mendigos.
A comunidade libanesa está espalhada no mundo inteiro, o pai logo encontrou um meio de restabelecer seus negócios, e a vida continuou. Athena pôde estudar em boas escolas, fez cursos de dança — que era sua paixão — e escolheu a faculdade de engenharia assim que terminou os cursos secundários.
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Já em Londres, seus pais a convidaram para jantar em um dos restaurantes mais caros da cidade, e explicaram, com todo cuidado, que ela tinha sido adotada. Ela fingiu surpresa, abraçou-os, e disse que nada iria mudar a relação entre eles.
Mas na verdade, algum amigo da família, em um momento de ódio, já lhe havia chamado de “órfã sem gratidão, você nem sequer é filha natural, e não sabe como se comportar”. Ela atirou um cinzeiro que o feriu no rosto, chorou escondida durante dois dias, mas logo se acostumou com o fato. O tal parente ficou com uma cicatriz que não podia explicar para ninguém, e passou a dizer que tinha sido agredido na rua por assaltantes.
Convidei-a para sair no dia seguinte. De maneira absolutamente direta disse que era virgem, freqüentava a igreja aos domingos, e não se interessava por romances de amor — estava mais preocupada em ler tudo que podia sobre a situação no Oriente Médio.