— Concordo. Mas acho que...
— Não ache nada. Caso eu apareça morta, isso será meu testamento, com a condição de nada ser dito agora.
Desliguei o gravador.
— Não há o que temer. Tenho amigos em todas as posições e cargos do governo, gente que me deve favores, que precisa ou precisará de mim. Nós podemos...
— Eu já não lhe disse que tinha um namorado que trabalha na Scotland Yard?
De novo esta conversa? Se era assim, por que {Paulo, estava “porque” CORRECAO PERFEITA} não estava lá quando todos nós precisávamos de sua ajuda, quando tanto Athena como Viorel podiam ter sido atacados pela multidão?
As perguntas surgiam uma atrás da outra: ela queria me testar? O que passava na cabeça desta mulher — seria desequilibrada, inconstante, uma hora desejando estar ao meu lado, outra hora voltando com o tema de um homem que não existia?
— Ligue o gravador de novo — ela pediu.
Eu me sentia péssimo: comecei a pensar que sempre havia sido usado por ela. Gostaria de poder dizer naquele momento: “vá embora, não apareça nunca mais na minha vida, desde que a conheci tudo se transformou em um inferno, vivo esperando o dia em que chega aqui, me dá um abraço, me beija, e pede para ficar ao meu lado. Isso não acontece nunca”.
— Alguma coisa errada?
Ela sabia que tinha alguma coisa errada. Melhor dizendo, era impossível que não reconhecesse o que sentia, porque não tinha feito outra coisa durante todo este tempo além de 361
demonstrar meus sentimentos, embora só tenha falado deles uma única vez. Mas desmarcava qualquer compromisso para encontrá-la, estava ao seu lado sempre que pedia, tentava criar algum tipo de cumplicidade com seu filho, achando que um dia ele poderia chamar-me de pai. Nunca pedi que deixasse o que fazia, aceitava sua vida, suas decisões, sofria em silêncio com sua dor, me alegrava com suas vitórias, orgulhava-me da sua determinação.
— Por que desligou o gravador?
Fiquei aquele segundo entre o céu e o inferno, entre a explosão e a submissão, entre o raciocínio frio e a emoção destruidora. No final, usando todas as forças que tinha, consegui manter o controle.
Apertei o botão.
— Continuemos.
— Estava dizendo que estou sendo ameaçada de morte.
Pessoas telefonam, sem dizer nomes; me insultam, afirmam que sou uma ameaça ao mundo, estou querendo trazer de volta o reino de Satanás, e que não podem permitir isso.
— Você falou com a polícia?
Omiti propositadamente a referência ao namorado, mostrando desta maneira que jamais acreditei na história.
— Falei. Eles gravaram os telefonemas. Vêm de cabines telefônicas, mas disseram que não me preocupasse, estão vigiando minha casa. Conseguiram prender uma destas pessoas: tem um desequilíbrio mental, acha que é a reencarnação de um apóstolo, e que “desta vez é preciso lutar para que Cristo não seja expulso de novo”. Neste momento, está em um hospital psiquiátrico; a polícia explicou que já foi internado antes, depois de ameaçar outros pelo mesmo motivo.
— Se estão atentos, nossa polícia é a melhor do mundo.
Realmente não há por que se preocupar.
— Não tenho medo da morte; se meus dias terminassem hoje, levaria comigo momentos que pouca gente com minha idade teve a chance de viver. O que tenho medo, e por isso pedi que gravasse nossa conversa hoje, é de matar.
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— Matar?
— Você sabe que estão na justiça alguns processos que pretendem tirar Viorel de minha guarda. Tentei com amigos, mas ninguém pode fazer nada; é preciso esperar o resultado. Segundo eles, dependendo do juiz, estes fanáticos irão conseguir o que desejam. Por causa disso, comprei uma arma.
“Sei o que significa um filho ser afastado da sua mãe, porque vivi a experiência em minha carne. De modo que, no momento em que o primeiro oficial de justiça se aproximar, eu atiro. E
continuarei atirando, até que as balas acabem. Se não me atingirem antes, lutarei com as facas de minha casa. Se tirarem as facas, usarei minhas unhas e meus dentes. Mas ninguém conseguirá afastar Viorel do meu lado, a não ser que passem por cima do meu cadáver. Está gravando?”
— Está. Mas existem meios...
— Não existem. Meu pai está acompanhando os processos.
Disse que no caso de direito de família, pouco se há que fazer.
“Agora desligue o gravador.”
— Era esse seu testamento?
Não respondeu. Como eu não fazia nada, tomou ela própria a iniciativa. Em seguida, foi até o aparelho de som, e colocou a famosa música das estepes, que agora eu quase conhecia de cor. Dançou da maneira que fazia nos rituais, completamente fora de compasso,e eu sabia onde estava pretendendo chegar. Seu gravador continuava ligado, como testemunha silenciosa de tudo que estava se passando ali. Enquanto a luz de uma tarde ensolarada entrava pelas vidraças, Athena mergulhava em busca de outra luz, que estava ali desde que o mundo havia sido criado.
A centelha da Mãe parou de dançar, interrompeu a música, colocou a cabeça entre as mãos, e ficou quieta por algum tempo. Logo levantou os olhos e encarou-me.
— Você sabe quem está aqui, não sabe?
— Sim. Athena e sua parte divina, Hagia Sofia.
— Eu me habituei a fazer isso. Não penso que seja necessário, mas foi o método que descobri para encontrá-la, e 363
agora se tornou uma tradição em minha vida. Você sabe com quem está falando: com Athena. Hagia Sofia sou eu.
— Sei disso. Quando dancei pela segunda vez em sua casa, descobri também um espírito que me guia: Philemon. Mas não converso muito com ele, não escuto o que ele me diz. Sei que, quando está presente, é como se nossas duas almas finalmente se encontrassem.
— Isso mesmo. E Philemon e Hagia Sofia vão hoje conversar sobre amor.
— Eu teria que dançar.
— Não precisa. Philemon me entenderá, pois vejo que foi tocado pela minha dança. O homem que está diante de mim sofre por algo que julga jamais ter conseguido atingir: o meu amor.
“Mas o homem que está além de você mesmo, esse compreende que a dor, a ansiedade, o sentimento de abandono são desnecessários e infantis: eu te amo. Não da maneira que sua parte humana deseja, mas da maneira que a centelha divina assim desejou. Habitamos uma mesma tenda, que foi colocada em nosso caminho por Ela. Ali entendemos que não somos escravos de nossos sentimentos, mas seus mestres.
“Servimos e somos servidos, abrimos as portas de nossos quartos, e nos abraçamos. Talvez nos beijemos também —
porque tudo que acontece com intensidade na terra terá seu correspondente no plano invisível. E você sabe que não estou a provocá-lo, nem estou brincando com seus sentimentos ao dizer isso.”
— O que é o amor, então?
— A alma, o sangue, e o corpo da Grande Mãe. Eu te amo com a mesma força que almas exiladas se amam, quando se encontram no meio do deserto. Nunca se passará nada de físico entre nós, mas nenhuma paixão é inútil, nenhum amor é jogado fora. Se a Mãe despertou isso em seu coração, também despertou no meu, embora você talvez o aceite melhor. É impossível que a energia do amor 364
se perca — ela é mais poderosa que qualquer coisa, e se manifesta de muitas maneiras.
— Não sou suficientemente forte para isso. Essa visão abstrata me deixa deprimido e mais solitário que nunca.
— Nem eu: preciso de alguém ao meu lado. Mas um dia nossos olhos vão se abrir, as diversas formas de Amor poderão se manifestar, e o sofrimento desaparecerá da face da Terra.
“Penso que não deve demorar muito; muitos de nós estão retornando de uma longa viagem, onde fomos induzidos a procurar coisas que não nos interessavam. Agora nos damos conta que eram falsas. Mas esta volta não se faz sem dor — porque passamos muito tempo fora, achamos que somos estrangeiros em nossa própria terra.
“Levaremos algum tempo para encontrar os amigos que também partiram, os lugares onde estavam nossas raízes e nossos tesouros. Mas isso terminará acontecendo.”