— Olhe, Bo, aquele gole de brande me salvou a vida, disse ele. Mas, diga-me; onde estaremos nós?
— Não sei melhor que você.
— Não faz mal, depois conheceremos melhor essa gente, disse ele em voz sonolenta, voltando-se para sua cama. Mas aquele vinho era mesmo bom. Graças a Deus, Volstead nunca desceu aqui!
Foram estas as últimas palavras ouvidas por mim antes de cair no sono mais pesado que me lembro de ter dormido.
CAPÍTULO III
Quando voltei a mim, a princípio não pude compreender onde me encontrava. Os acontecimentos do dia anterior me pareciam um pesadelo incrível, e não me podia convencer de que teria de aceitá-los como a expressão da realidade. Relanceei surpreendido aquela grande sala vazia e sem janelas, de paredes pardacentas, aquelas linhas de trêmula luz púrpura que jorrava das cornijas, aquelas parcas peças de mobiliário e finalmente os dois outros leitos, de um dos quais vinha um ressonar forte que eu a bordo do «Stratford» aprendera a associar com a pessoa de Maracot. Tudo aquilo era extravagante demais para ser verdadeiro e só quando tomei entre os dedos as cobertas de minha cama e examinei o curioso material de que eram feitas — fibras secas de alguma planta marinha — é que me convenci da realidade da inconcebível aventura que nos sucedera. Ainda estava refletindo sobre isso quando ouvi uma gargalhada estrondosa e Bill Scanlan se sentou na cama.
— Bom dia, Bo! gritou ele rindo, ao ver que eu estava acordado.
— Você me parece em boa disposição de espírito, disse eu, um tanto mal-humorado. Não vejo muitas razões para riso, meu amigo.
— Ah! eu também me achava com pouca disposição para rir quando acordei, replicou ele. Mas depois me veio à cabeça um pensamento engraçado e foi o que me provocou riso.
— Pois então me conte o que foi para que eu ria também.
— Pensei que estupendo não seria se todos nós nos tivéssemos amarrado àquela sonda. Acho que com aqueles aparelhos de vidro poderíamos respirar perfeitamente. Quando o velho Howie olhasse para baixo veria nós todos subindo numa penca através das águas. Decerto ele haveria de supor que nos tinha fisgado. Seria impagável!
Nossas risadas acordaram o doutor, que se sentou no leito tendo no rosto a mesma expressão de surpresa que antes houvera no meu. Cheguei até a esquecer nossas preocupações ao ouvir seus comentários volúveis que se alternavam entre uma alegria profunda ante a perspectiva de tal campo para estudos e a imensa tristeza de nunca poder esperar transmitir os resultados de suas pesquisas aos seus confrades da terra. Por fim voltou às necessidades do momento.
— São nove horas, disse ele olhando para o relógio. Todos os nossos relógios marcavam a mesma hora, mas não havia nada para nos indicar se seriam da noite ou da manhã.
— Devemos conservar nosso calendário, disse Maracot; descemos no dia 3 de outubro. Chegamos a este lugar na tarde do mesmo dia. Quanto tempo dormimos?
— Co'os diabos, poderia ter sido um mês! redargüiu Scanlan. Nunca dormi tão profundamente desde que Mickey Scott me pôs nocaute num encontro em seis assaltos lá nas obras.
Nós nos vestimos e lavamos, pois tínhamos à mão todos os confortos da civilização. A porta, porém, estava fechada e era evidente que por enquanto estávamos prisioneiros. Apesar da aparente ausência de ventilação, a atmosfera se conservava perfeitamente respirável, o que observamos ser devido a uma corrente de ar que penetrava, por pequenos orifícios da parede. Deveria também haver alguma fonte central de calor, pois, apesar de não se ver nenhum aquecedor, a temperatura era agradàvelmente cálida. Em dado momento observei um botão em uma das paredes e apertei-o. Era, como eu esperava, uma campainha, pois a porta se abriu imediatamente e apareceu um pequeno homem de tez escura, vestido com uma túnica amarela. Olhou-nos inquisidoramente com grandes olhos castanhos e amigos.
— Estamos com fome, disse Maracot; pode arranjar-nos algum alimento?
O homem abanou a cabeça e sorriu. Era evidente que aquelas palavras eram incompreensíveis para ele.
Scanlan tentou fazer-lhe compreender sua algaravia ianque que foi recebida com o mesmo sorriso pálido. Quando, porém, abri a boca e enfiei o dedo por ela a dentro, o homem sacudiu vigorosamente a cabeça em ar de compreensão e afastou-se rapidamente.
Dali a dez minutos a porta se abria e dois criados de tez amorenada como o primeiro apareceram, empurrando uma pequena mesa de rodas à sua frente. Mesmo que estivéssemos no Biltmore Hotel não teríamos uma refeição mais agradável. Havia café, leite quente, pão, delicioso peixe e mel. Por meia hora permanecemos ocupados demais para nos importarmos em indagar o que comíamos ou como era obtido. No fim deste tempo os dois criados apareceram novamente, levaram a mesa e fecharam cuidadosamente a porta atrás de si.
— Estou mesmo sem saber o que pensar, disse Bill Scanlan. Será um sonho ou não? O senhor que nos trouxe até aqui, doutor, diga-me o que é que acha disto tudo.
O Doutor Maracot abanou a cabeça.
— Também a mim me parece um sonho, mas é um sonho maravilhoso! Se pudéssemos fazer chegar nossa história ao conhecimento do mundo!
— Uma coisa, disse eu, parece-me certa: era verdadeira a lenda dos Atlantes e uma parte deste povo conseguiu sobreviver até hoje.
— Mesmo se for isso, disse Bill Scanlan cocando a cabeça, macacos me mordam se posso compreender como é que eles conseguem ar, água fresca e tudo o mais. Talvez aquele engraçado pato de barba que vimos na noite passada nos possa dar depois algumas explicações.
— Como o poderia fazer se não temos uma linguagem comum?
— Utilizemos nossa própria observação, nesse caso, disse Maracot. Uma coisa pelo menos já posso compreender. É que o mel que comemos no almoço é mel sintético, como já aprendemos a fazer sobre a terra. Mas se o mel é sintético, por que não o seriam também o café e o trigo? As moléculas dos elementos são como tijolos que se acham ao nosso redor. Temos apenas de aprender como deslocar determinados tijolos — às vezes mesmo um único tijolo — a fim de fabricar substâncias novas. Por um simples deslocamento desses tijolos o açúcar torna-se amido, ou então álcool.