O que é que produz estes deslocamentos? O calor. A eletricidade. Talvez outras causas que ainda desconhecemos. Algumas substâncias transformam-se espontaneamente, como o rádio tornando-se em chumbo ou o urânio tornando-se rádio, sem que toquemos nelas.
— Supõe então que possuam uma química muito adiantada?
— Estou certo disso. Também não existem tijolos elementares que não estejam ao alcance de suas mãos. Hidrogênio podem obtê-lo da água do mar. Azoto e carbônio, dos vegetais marinhos e fósforo e cálcio devem existir em abundância no depósito batíbico do fundo do oceano. Com processos adequados e os conhecimentos necessários, o que não poderiam eles produzir?
O doutor começara uma dissertação sobre a química quando Manda entrou, saudando-nos amistosamente. Vinha com ele o mesmo velho de aparência venerável que havíamos visto na noite anterior. Ele deveria ter reputação de erudito, pois dirigiu-nos a palavra em várias línguas diferentes, mas que nos eram todas igualmente ininteligíveis. Encolheu os ombros então e falou com Manda, que deu uma ordem aos dois criados que ainda esperavam na porta. Imediatamente estes desapareceram, voltando dali a pouco com uma curiosa tela suportada por dois postes laterais. Tinha grande semelhança com nossas telas de cinema, mas era recoberta de um material brilhante que cintilava à luz. Colocaram-na de encontro a uma das paredes. O ancião afastou-se dela um número certo de passos e marcou o lugar no chão. Daí ele se voltou para Maracot e tocou sua testa, apontando para a tela.
Maracot abanou a cabeça para mostrar nossa perplexidade. Pareceu por um momento que o ancião ficara no mesmo estado. Mas subitamente pareceu ter uma idéia. Apontou para a sua própria pessoa, e voltando-se em seguida para a tela fixou nela os olhos parecendo concentrar a atenção. Quase imediatamente surgiu na tela, à nossa frente, a figura dele próprio. Apontou em seguida para nós e dali a um momento surgia a imagem do nosso pequeno grupo em lugar da sua. Não se parecia muito conosco, é verdade. Scanlan tinha a aparência de um cômico chinês e Maracot a de um cadáver, mas via-se claramente que deveríamos ser nós mesmos, tais como aparecíamos aos olhos do operador.
— É uma projeção do pensamento! exclamei.
— Exatamente, concordou Maracot. É sem dúvida uma invenção das mais maravilhosas e afinal não passa de uma engenhosa combinação de telepatia e televisão, que apenas agora começamos vagamente a compreender sobre a terra.
— Nunca pensei que me veria como artista de cinema, se é que aquele chinês de cara de queijo representa mesmo a minha pessoa, disse Scanlan. Se pudéssemos levar estas notícias para o editor do «Ledger» poderíamos ganhar com que viver folgadamente o resto da vida. Seria um negocião se fosse possível.
— Nisso é que está a dificuldade, observei. Por São Jorge, viraríamos o mundo de pernas para o ar se conseguíssemos voltar. Mas que é que eles querem dizer com esses gestos?
— Aquele velho quer ver sua habilidade para a coisa, doutor.
Maracot tomou o lugar indicado e projetou suas imagens com perfeição. Vimos uma imagem de Manda e em seguida uma outra do «Stratford», tal como o havíamos deixado.
Tanto Manda como o velho sábio exprimiram por sinais a sua aprovação à vista do navio e Manda fez com as mãos um largo gesto, apontando primeiro para nós e em seguida para a tela.
— Querem que lhes conte tudo a respeito de nossas aventuras, exclamei. Querem saber por meio de imagens quem somos nós e como viemos até aqui.
Maracot curvou-se para Manda para mostrar que compreendia, e começara a projetar uma imagem de nossa viagem, quando Manda levantou a mão e o interrompeu. A uma ordem sua os criados removeram a tela e os dois atlantes acenaram-nos para que os seguíssemos.
Era um prédio imenso e atravessamos corredor após corredor até chegarmos finalmente a um enorme salão. A um lado havia uma grande tela da mesma natureza que aquela que havíamos visto. Em frente da mesma achava-se reunido um auditório no mínimo de mil pessoas, que nos receberam com um sussurro de boas-vindas. Era composto de pessoas dos dois sexos e de todas as idades. Os homens, trigueiros e de barba longa; as mulheres, belas na juventude e de aspecto venerável em idade mais avançada. Tivemos pouco tempo para observá-los, pois conduziram-nos logo para os lugares reservados para nós na fileira da frente e Maracot foi então colocado em frente da tela; por uma manobra qualquer a claridade das luzes diminuiu de intensidade e ele recebeu um sinal para começar.
E representou magnificamente o seu papel. A princípio vimos nosso navio saindo do Tâmisa e um sussurro de admiração perpassou pelo auditório àquele autêntico espetáculo de uma cidade moderna. Em seguida surgiu um mapa indicando o seu percurso. Apareceu depois a caixa de aço com seus aparelhos, que foi saudada com um murmúrio de reconhecimento. Vimo-nos a nós mesmos novamente descendo e atingindo as bordas do abismo. Em seguida mostrou o aparecimento do monstro que nos atacara. «Marax», «Marax!» exclamou o povo ao vê-lo. Era evidente que eles já haviam aprendido a conhecê-lo e temê-lo. Houve um silêncio de emoção quando o monstro empolgou nosso cabo'e um sussurro de horror quando os fios se partiram e caímos na voragem. Num mês de explicações não poderíamos ter dado uma idéia tão clara de nossa aventura como naquela meia hora de demonstração visual.
Ao se dissolver o auditório eles procuraram demonstrar-nos sua simpatia, aglomerando-se ao redor de nós e batendo amistosamente em nossas costas para mostrar que éramos bem-vindos. Fomos apresentados a vários chefes sucessivamente, mas a única coisa que os diferençava dos demais deveria ser a sabedoria, pois todos pareciam pertencer à mesma categoria social e estavam vestidos aproximadamente do mesmo modo. Os homens usavam túnicas cor de açafrão que lhes desciam até os joelhos, cintos e altas botas de um material escamoso e resistente, que deveria ter antes servido de proteção a algum animal marinho. As mulheres estavam graciosamente trajadas no estilo clássico; suas vestes flutuantes, de todas as tonalidades do róseo, azul e verde, eram enfeitadas com fileiras de pérolas ou lâminas opalescentes de conchas. Muitas delas eram de uma beleza incomparável. Uma principalmente… Mas para que envolver nesta narrativa os meus sentimentos particulares? Apenas direi que Mona é filha única de Manda, o chefe supremo daquele povo, e que desde aquele primeiro encontro eu li nos seus olhos escuros uma mensagem de compreensão e simpatia que me veio direita ao coração, assim como o meu reconhecimento e admiração podem ter ido ao dela. Não preciso por enquanto dizer mais nada a seu respeito. Basta saber-se que desse momento em diante uma influência nova e poderosa penetrou em minha vida. Quando vi Maracot a gesticular com desusada animação para uma senhora de aspecto bondoso e Scanlan a exprimir por gestos sua admiração no centro de um grupo risonho de moças, vi que meus companheiros também haviam começado a ver nossa situação por uma face menos trágica. Se estávamos mortos para o mundo, pelo menos havíamos encontrado uma outra vida que nos prometia alguma compensação pela que havíamos perdido.
Mais tarde, naquele mesmo dia, fomos guiados por Manda e outros amigos por algumas seções do imenso edifício. Os depósitos acumulados pelo tempo o haviam enterrado tanto no leito do oceano que só era acessível pelo teto, e deste ponto descia-se através de corredores e mais corredores até atingir-se o nível do primeiro pavimento, várias centenas de pés abaixo da câmara de ingresso. O chão deste por sua vez fora escavado e viam-se em todas as direções corredores que se aprofundavam pelas entranhas da terra. Mostraram-nos os aparelhos de fabricação de ar, com as bombas que o faziam circular através do edifício. Maracot fez-nos observar cheio de espanto que não era só o oxigênio e o azoto que eles fabricavam, mas que retortas menores produziam outros gases que só podiam ser o argônio, neônio e outros elementos pouco conhecidos da atmosfera que só agora estamos começando a compreender. As caldeiras destiladoras para a fabricação de água fresca e as poderosas instalações elétricas constituíam outros curiosos objetos de interesse, mas grande parte dos mecanismos era tão complicada que era difícil para nós acompanhar em detalhe o seu funcionamento. Apenas posso dizer que vi com meus próprios olhos e provei com minha boca substâncias diversas em estado gasoso ou líquido que eram conduzidas a aparelhos especiais, aí submetidas à ação de calor, pressão e eletricidade, obtendo-se como produto farinha de trigo, chá, café ou vinho.