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Uma consideração se impunha desde logo a nosso espírito ao examinarmos tudo aquilo. Era que aquela submersão fora prevista muito antes que a terra fosse tragada pelo oceano. Era desde logo evidente e não necessitava provas o fato de que estas precauções não poderiam ter sido tomadas depois do fato consumado, mas ficamos mesmo convictos de que todo aquele vasto edifício fora desde o princípio construído com o único objetivo de constituir uma arca de refúgio. As enormes retortas e caldeiras em que o ar, alimentos, água destilada e outros produtos necessários eram obtidos, eram todas embutidas nas paredes e constituíam evidentemente parte integrante da construção original. O mesmo sucedia com as câmaras de saída, as seções de trabalhos em sílica onde fabricavam as bolas de vidrina e as gigantescas bombas que regulavam a entrada e saída da água. Cada uma destas coisas havia sido cuidadosamente preparada pela sabedoria e previsão daquele extraordinário povo, que parecia haver estendido um poderoso braço até a América Central e outro até o Egito, de modo a deixar sinais seus sobre a terra até muito tempo depois de sua pátria se submergir no Atlântico. Quanto a estes seus descendentes, julgamos que provavelmente teriam degenerado, o que aliás seria muito natural, e que se haviam limitado apenas a conservar parte da ciência de seus antepassados, sem ter a energia de acrescê-la. Eles possuíam forças poderosas ao seu dispor, mas pareciam estranhamente faltos de iniciativa, nada havendo adicionado ao maravilhoso legado que haviam recebido. Estou certo de que se Maracot utilizasse estes conhecimentos obteria logo resultados dos mais admiráveis. Quanto a Scanlan, seu espírito vivo logo arranjou meios de distrair nossos hóspedes com habilidades que decerto lhes pareciam tão surpreendentes como sua ciência para nós. Ele tinha no bolso uma gaita quando fizemos nossa descida e tocava-a sempre agora, para perpétua alegria de nossos hóspedes, que escutavam arrebatados, como o faríamos com um Mozart, as canções populares de sua terra natal.

Já disse antes que nem todo o edifício estava aberto à nossa inspeção e devo acrescentar mais alguns detalhes sobre este assunto. Havia um corredor descendente pelo qual víamos continuamente gente passando e que era sempre evitado pelos guias em nossas excursões. Como era natural, nossa curiosidade foi aguçada por essa circunstância e resolvemos uma tarde tomar o risco de fazer algumas explorações por nossa própria conta. Em conformidade com isto, numa hora em que havia pouco movimento deslizamos para fora de nosso quarto e tomamos o caminho da região desconhecida.

Aquele corredor nos conduziu a uma alta porta em forma de arco, que parecia ser feita de ouro maciço. Empurrando-a encontramo-nos em um vasto salão, formando um quadrado de duzentos pés de lado, no mínimo. As paredes que o limitavam eram pintadas de cores vivas e ornadas com estranhas pinturas e estátuas de entes grotescos, com enormes toucados semelhantes aos dos trajes de cerimônia dos nossos índios americanos. No outro extremo deste grande salão via-se uma enorme figura sentada, com as pernas cruzadas como um Buda, mas sem nada daquela aparência benévola que se vê nas suas plácidas feições. Muito pelo contrário, esta era uma divindade feroz, de boca semi-aberta e olhos rubros e cruéis, cujo aspecto terrível era ainda mais exagerado pelo efeito de lâmpadas elétricas colocadas atrás dos mesmos. Em seu regaço achava-se um grande forno, que, aproximando-nos, vimos estar cheio de cinzas.

— Moloc! disse Maracot. Moloc ou Baal — o velho deus das raças fenícias.

— Céus! exclamei, cheio de horror com a lembrança da velha Cartago diante dos olhos. Será que um povo tão acolhedor como este sacrifica vítimas humanas?

— Pelo menos espero que eles o façam em família, Bo, disse Scanlan alarmado. Não há nenhuma vantagem em que estendam esse uso a nós.

— Creio que já se terão corrigido, observei. É o infortúnio próprio que nos ensina a ter piedade dos outros.

— Deve ser isso, disse Maracot, remexendo nas cinzas. O deus continua a ser o mesmo, mas seguramente o culto se terá tornado menos cruel. Isto deve ser folhas queimadas ou coisa que o valha. Mas houve talvez uma época…

Nossas especulações, porém, foram interrompidas por uma voz ríspida ao nosso lado, e, voltando-nos, vimos ao nosso redor vários homens vestidos de amarelo e com chapéus altos, que deveriam ser os sacerdotes do templo. Pela expressão de seus rostos vi que estávamos muito perto de ser as últimas vítimas de Baal. Um deles chegou mesmo a sacar uma faca da cintura, e com gritos e gestos ferozes nos expulsaram rudemente de seu relicário sagrado.

— Com mil diabos! exclamou Scanlan. Se este sujeito continua a berrar desse modo eu dou uns murros nele! Largue o meu paletó, seu cara de coruja!

Por alguns momentos supus que iríamos ter o que Scanlan chamava um «tempo quente», dentro do recinto sagrado. Conseguimos, contudo, arrastar sem incidentes o colérico mecânico para o abrigo de nosso quarto, mas pela atitude de Manda e outros dos nossos amigos vimos que nossa excursão fora sabida e deplorada.

Havia porém outro santuário que nos foi mostrado espontaneamente, tendo tido esta visita um resultado dos mais inesperados para nós, pois proporcionou-nos um meio de comunicação com nossos amigos, embora imperfeito e ainda difícil. Era um salão que havia abaixo do templo, sem decorações nem ornamentos a não ser, numa extremidade, uma estátua de marfim amarelecida pelo tempo, representando uma mulher segurando uma espada e com uma coruja trepada no ombro. O guarda do santuário era um venerável velho, mas, apesar de sua idade, vimos logo que pertencia a uma raça muito diferente da dos sacerdotes do templo. Enquanto eu e Maracot admirávamos a estátua de marfim, meditando intrigados onde havíamos visto uma figura semelhante, o ancião nos dirigiu a palavra.

— Tea, disse ele apontando para a estátua.

— Por São Jorge! exclamei, ele está falando em grego!

— Tea! Atena! repetiu o ancião.

Não havia dúvida possível. «Deusa — Atena»: as palavras confundíveis. Maracot, cujo cérebro formidável havia absorvido um pouco de todos os conhecimentos humanos começou imediatamente a fazer perguntas em grego que eram apenas parcialmente compreendidas e respondidas num dialeto tão arcaico que era quase incompreensível. Mesmo assim obteve várias informações, e conseguimos desse modo um intermediário por meio do qual poderíamos com alguma dificuldade comunicar-nos com nossos novos amigos.

— Esta é uma prova notável, disse-nos Maracot, do fundo da verdade que geralmente existe nas lendas. Há sempre uma base de fatos, mesmo se com o decorrer dos anos surgem adulterações. Devem saber — ou provavelmente não saberão — («Não se fie muito!», havia gritado Scanlan) — que havia uma guerra entre os primitivos gregos e os atlantes da época da destruição desta grande ilha. Este fato está registrado na descrição feita por Sólon do que ficou sabendo por intermédio dos sacerdotes de Sais. Podemos conjeturar que havia prisioneiros gregos nas mãos dos atlantes neta época e que alguns deles haviam pertencido ao serviço do seu Templo, tendo levado sua religião consigo. Aquele homem é, ao que parece, o velho sacerdote hereditário do seu culto e talvez mais tarde possamos por seu intermédio aprender alguma coisa mais sobre este antigo povo.