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Deixando para trás aquela última coisa que nos lembrava a terra, penetramos na obscuridade do mundo submarino, deparando logo com um espetáculo completamente inesperado. Apareceu à nossa frente uma confusa massa movediça que, ao nos aproximarmos, vimos ser formada por uma multidão de homens, cada um com seu invólucro de vidrina, que arrastava grandes trenós cheios de carvão. Era um trabalho pesado e os pobres diabos curvavam-se para a frente puxando com todas as forças as cordas de pele de tubarão que serviam de tirantes. Com cada grupo de homens ia um que parecia chefiá-los, e o que mais nos chamou a atenção foi ver que os chefes e os operários pertenciam a raças visivelmente diversas. Os últimos eram homens altos, vistosos, de olhos azuis e corpos vigorosos. Os outros, como já descrevi, eram de tez escura, quase negra, atarracados de corpo. Não podíamos naquele momento penetrar o mistério, mas pareceu-me que uma raça deveria ser escrava hereditária da outra, e Maracot era mesmo de opinião que aqueles bem poderiam ser os descendentes dos prisioneiros gregos cuja deusa havíamos visto no templo.

Encontramos em nosso caminho antes de chegarmos à mina vários magotes destes homens, cada um com carregamento de carvão. Neste ponto os depósitos orgânicos e as formações arenosas que havia logo abaixo haviam sido removidos, deixando aberta uma imensa cova em que se viam estratos alternados de argila e carvão, representando camadas sucessivas do solo daquele antigo continente que desaparecera nas águas do Atlântico. Em vários níveis desta imensa escavação podíamos ver grupos de homens a talhar o carvão, enquanto outros o reuniam em montes e colocavam em cestos que eram içados em seguida. A mina era tão funda que nem podíamos ver a outra extremidade daquele enorme poço, que certamente havia sido escavado aos poucos por numerosas gerações de operários. Era este carvão que, transformado em força elétrica, ia produzir a energia que movimentava todos os maquinismos dos atlantes. É interessante, contudo, assinalar que o nome da velha nação fora conservado corretamente nas lendas, pois quando o mencionamos a Manda e a outros, eles primeiro mostraram-se grandemente surpreendidos pelo fato de o conhecermos, sacudindo em seguida vigorosamente a cabeça para mostrar que compreendiam.

Contornando a abertura da mina pela direita chegamos a um aglomerado de rochedos pouco elevados de basalto, de superfície tão clara e luzidia, como quando se haviam projetado das entranhas da terra, cujos ápices, que se elevavam algumas centenas de metros acima de nossas cabeças, tinham um brilho sombrio contra aquele fundo de trevas. A base destas rochas de origem vulcânica estava afogada num denso matagal de altas plantas marinhas, que se elevavam dentre massas intricadas de corais crinóides. Caminhamos por algum tempo ao redor desta densa massa de vegetação, que nossos companheiros açoitavam com seus bastões, fazendo sair para nosso divertimento uma extraordinária variedade de estranhos peixes e crustáceos e apanhando de vez em quando um ou outro exemplar para suas mesas. Vagueamos deste modo despreocupado por uma milha ou duas, mas repentinamente vi Manda parar e olhar ao seu redor com gestos de alarma e surpresa. Estes gestos deveriam formar uma linguagem, pois num momento seus companheiros compreenderam a causa de sua agitação; nós também, assustados, demos com a razão de todo aquele alvoroço. O Dr. Maracot desaparecera.

Não tínhamos dúvidas de que estivera conosco na mina de carvão e nos acompanhara até os rochedos de basalto. Não era concebível que se houvesse adiantado de nós, por isso deveria ter ficado em algum lugar para trás. Apesar da inquietação de nossos amigos, Scanlan e eu, que conhecíamos a distração do bom homem, confiávamos em que não haveria causa para alarma e que logo o encontraríamos a examinar absorto qualquer ser marinho que lhe teria atraído a atenção. Todos nós voltamos sobre nossos passos, mas mal havíamos caminhado uma centena de jardas quando o avistamos.

Ele vinha correndo — correndo com uma agilidade que julgaria impossível a um homem de seus hábitos. Mesmo a pessoa menos atlética deste mundo sabe correr quando movida pelo medo. Suas mãos estavam estendidas a pedir socorro e precipitava-se cegamente para a frente, aos tropeções, com grotesca energia. Tinha aliás boas razões para isso, pois três animais horripilantes o seguiam de perto. Eram caranguejos-tigres listrados de preto e branco do tamanho de um cão terra-nova. Felizmente eles não eram também muito bons corredores e adiantavam-se pelo fofo leito do oceano numa curiosa corrida de lado que era pouco mais rápida que a do atemorizado fugitivo.

Sua resistência, porém, devia ser melhor e provavelmente teriam em poucos minutos caído sobre ele com suas temíveis tenazes se nossos amigos não houvessem intervindo. Eles se precipitaram ao seu encontro com seus varões pontudos e Manda lançou a luz de uma poderosa lanterna elétrica que trazia no cinto sobre os olhos dos repulsivos monstros, que se internaram no matagal, perdendo-se de vista. Nosso companheiro deixou-se cair sobre uma elevação coralina e via-se pelo seu rosto que aquela aventura o deixara exausto. Contou-nos depois que havia penetrado naquela jângal marinha na esperança de apanhar o que lhe parecera ser um exemplar raro das grandes profundidades de um peixe do gênero Chimoera, mas fora dar exatamente na toca daqueles ferozes caranguejos-tigres, que imediatamente se haviam precipitado ao seu encalço. Só depois de um longo descanso é que pôde continuar a caminhada.

Logo depois de contornarmos as rochas de basalto é que vimos qual era nosso verdadeiro objetivo. A planície acinzentada que se estendia ante nós estava neste ponto recoberta de saliências irregulares e altas colunas, que nos mostravam que a grande cidade de outrora se achava à nossa frente. Teria sido enterrada para sempre pelos depósitos oceânicos como Herculanum o foi pelas lavas ou Pompéia pelas cinzas, se uma entrada para' ela não houvesse sido escavada pelos sobreviventes do templo. Esta entrada era um longo declive que terminava em uma larga rua com edifícios descobertos de cada lado. Aqui e além viam-se as paredes dos mesmos fendidas ou em ruínas, pois não eram tão sòlidamente construídos como o templo, mas as decorações interiores achavam-se na maioria dos casos no mesmo estado que quando a catástrofe ocorrera, excetuando-se as inovações de toda sorte, algumas vezes belas e outras horripilantes, trazidas pelo mar. Nossos guias não nos encorajaram a examinar as primeiras que encontramos, caminhando apressadamente até chegarmos a um prédio que deveria certamente ter sido o grande palácio ou cidadela central, ao redor da qual toda a cidade se achava edificada. Os pilares, colunas, as enormes cornijas recamadas de esculturas, os frisos e as escadas deste edifício excediam em beleza tudo o que já havia visto sobre a terra. Chegando mais perto pareceram-me semelhantes aos restos do Templo de Karnak, em Luxor, no Egito, e o que é mais estranho é que aquelas decorações e aquelas esculturas em relevo se assemelhavam mesmo em detalhe às da grande ruína das margens do Nilo, o mesmo sucedendo com os capitéis em forma de loto das colunas. Era um espetáculo impressionante estar-se naqueles vastos saguões pavimentados de mármore, com grandes estátuas torrejando a cada lado, e ver-se como vimos naquele dia grandes enguias prateadas serpejando acima de nossas cabeças e outros peixes desfechando em todas as direções, afugentados pelo jacto de luz que lançávamos à nossa frente. Erramos de sala em sala, observando por toda parte os sinais daquele requinte de fausto a que haviam chegado, e, ocasionalmente, daquela doida lascívia que, segundo a lenda, fora o que atraíra a maldição divina sobre a nação. Vimos um pequeno quarto maravilhosamente ornamentado de nácar, que ainda agora luzia com matizes opalescentes à luz de nossas lâmpadas. Uma plataforma lavrada de um metal amarelo e um leito da mesma natureza se achavam a um canto, e sentia-se que ali bem poderia ter sido o quarto de uma rainha, mas ao lado do leito se achava agora uma repugnante lula negra, levantando e deixando cair o corpo num ritmo lento, como se fosse algum coração mau que ainda pulsasse bem no centro daquele palácio maldito. Senti-me satisfeito, e depois soube que o mesmo sucedera aos meus companheiros, quando nossos guias se retiraram conosco, levando-nos por alguns momentos a um anfiteatro arruinado e em seguida a um dique com um farol numa extremidade, o que indicava que aquela cidade fora um porto de mar. Dali a pouco saíamos daqueles lugares de mau agouro e entrávamos novamente na já familiar planície batibiana.