Nossas aventuras, porém, ainda não se haviam encerrado, pois iríamos encontrar mais uma que causou tanto alarma a nossos companheiros como a nós mesmos. Já estávamos perto de nossa morada quando um dos guias apontou para cima em sinal de alarma. Olhando para essa direção, vimos um espetáculo extraordinário. Da obscuridade das águas que nos cobriam vinha emergindo um vulto enorme e escuro, que se avolumava à proporção que se aproximava em sua queda rápida. A princípio víamo-lo apenas como uma massa indistinta, mas quando a luz o iluminou melhor pudemos ver que era o corpo monstruoso de um animal morto, com o ventre de tal modo rompido que suas entranhas se agitavam acima dele, enquanto caía. Sem dúvida os gases o haviam feito flutuar por algum tempo nas camadas mais altas do oceano, até que, libertado pela putrefação ou pelas devastações dos tubarões se reduzira a um peso morto que o arrastara volteando, para o fundo do oceano. Em nosso trajeto já havíamos observado vários grandes esqueletos de animais marinhos que os peixes haviam devorado até aos ossos, mas o corpo do que agora víamos, embora tivesse as entranhas de fora, conservava ainda a mesma aparência que tinha quando vivo. Nossos guias seguraram-nos com a intenção de nos arrastar para fora do seu caminho, mas vendo que ele não nos atingiria permaneceram no mesmo lugar. Nossos elmos de vidrina nos impediram de ouvir o estrondo daquele corpo enorme batendo no leito do oceano, mas este deveria ter sido ensurdecedor, a se julgar pela altura a que se elevou o limo do fundo. Era uma baleia de uns setenta pés de comprimento e pelos gestos alegres daquele povo submarino depreendi que para eles deveria ter grande utilidade o espermacete e a gordura da mesma. Deixaram-na contudo provisoriamente e dali a pouco nos achávamos de coração alegre em frente da porta esculpida do teto, pois, como não estávamos acostumados a tal exercício, sentíamo-nos cansados e com os membros doloridos. Finalmente, sãos e salvos, retiramos nossos invólucros de vidrina, sobre o chão lamacento da câmara de ingresso.
Alguns dias depois — contando o tempo pelo relógio — de termos feito a descrição cinematográfica de nossas aventuras, presenciamos uma exibição muito mais solene e augusta da mesma natureza, que nos mostrou de um modo claro e admirável a história passada deste notável povo. Não posso jactar-me de que tenha sido projetada exclusivamente em nossa honra, pois creio antes que tais acontecimentos eram rememorados publicamente de tempos a tempos a fim de transmitir a tradição, e que a parte à qual fomos admitidos era apenas um intervalo numa longa cerimônia religiosa. Seja o que for, porém, descrevê-la-ei o mais exatamente possível.
Fomos conduzidos ao mesmo grande salão ou teatro onde o Dr. Maracot havia projetado nossas aventuras sobre a tela. Estava lá reunida toda a comunidade e haviam-nos reservado, como antes, lugares de honra em frente da grande tela luminosa. Em seguida, após um longo canto que bem poderia ter sido uma espécie de hino patriótico, um ancião de cabelos alvos, que deveria ser o historiador ou cronista da nação, adiantou-se entre muitos aplausos e projetou sobre a superfície polida da tela uma série de aspectos para representar a ascensão e o declínio da sua gente. Desejaria poder reproduzir aqui esse espetáculo em todo o seu vigor e dramaticidade. Meus dois companheiros e eu perdemos toda noção do tempo e do lugar em que estávamos, arrebatados pelas cenas que se apresentavam ante nossos olhos, enquanto o auditório, movido no mais íntimo de sua alma, suspirava ou chorava à proporção que se desenrolava a tragédia que descrevia a ruína de sua pátria e a destruição do seu povo.
Nas primeiras cenas vimos o velho continente no apogeu de sua glória, como sua lembrança fora transmitida de pais e filhos. Tivemos uma visão rápida de campinas férteis, imensas em extensão, cortadas de cursos de água e sabiamente irrigadas, com grandes plantações de gramíneas, pomares ondulantes, rios pitorescos, colinas cobertas de matas, lagos e montanhas. Era salpicada de aldeias e coberta de herdades e belos edifícios residenciais. Em seguida surgiu a capital, uma cidade de extraordinária beleza, à beira-mar, de porto coalhado de galeras e cais atulhado de mercadorias, protegida por altas muralhas, torres e fossos circulares, tudo de proporções gigantescas. As casas se estendiam terra a dentro por muitas milhas e no centro da cidade havia um castelo ou cidadela ameada tão desmesurada e portentosa que parecia a criação de um sonho. Mostraram-se-nos em seguida imagens daqueles que viviam nessa idade de ouro, anciãos sábios e veneráveis, nobres guerreiros, sacerdotes virtuosos, mulheres belas e respeitáveis, crianças encantadoras — uma apoteose da espécie humana.
Vieram em seguida cenas de outra sorte. Vimos guerras, guerras contínuas por terra e por mar. Vimos povos inofensivos e nus espezinhados e esmagados por grandes carros de batalha ou pela investida de cavaleiros cobertos de armaduras. Vimos os tesouros acumulados pelos vencedores, mas à proporção que as riquezas aumentavam, as fisionomias que apareciam na tela tornavam-se progressivamente mais bestiais e cruéis. Víamo-las torvar-se cada vez mais de uma geração para outra. Mostraram-se-nos sinais de dissolução de costumes e degeneração moral, de predomínio da matéria e declínio do espírito. Esportes brutais à custa de outrem haviam tomado o lugar dos salutares exercícios de outrora. Não havia mais a simples e tranqüila vida de família nem o cultivo do espírito, mas tínhamos o espetáculo de um povo volúvel, precipitando-se irrequieto em busca do prazer e deixando sempre de encontrá-lo e a imaginar, todavia, ser possível encontrá-lo de algum modo mais complexo ou menos natural. Por um lado, havia-se erguido uma classe arqui-rica que unicamente buscava o deleite sensual e, por outro, havia-se criado uma escória humana menos que pobre, cuja única função na vida era atender às necessidades de seus amos, por malignas que fossem tais necessidades.
Mas, de repente, passou-se a um novo assunto. Havia reformadores em ação, a procurar desviar a nação dos maus rumos e a fazê-la retornar às sendas mais elevadas que abandonara. Vimo-los, esses graves e austeros homens, a argumentar e a defender suas idéias em meio do povo, mas desprezados e escarnecidos por aqueles mesmos a quem tentavam salvar. Vimos, principalmente, hostilizar a esses reformadores os sacerdotes de Baal, os quais gradualmente permitiram que os rituais e pompas externas se substituíssem ao altruístico desenvolvimento espiritual. Mas aqueles não eram de tempera a se atemorizar com ameaças nem temer humilhações. Continuavam a pugnar pela salvação do povo, e assumiam seus rostos um aspecto mais grave e, mesmo, mais aterrador, como os de homens que tivessem terríveis coisas a comunicar, que se apresentavam mesmo aos seus próprios espíritos como temerosas visões. Alguns de seus ouvintes pareciam prestar atenção e mostrar-se apavorados com suas palavras, mas outros voltavam-lhes, rindo, as costas, mergulhando-se, cada vez mais, em seu pântano de pecados. Veio, por fim, um tempo em que os reformadores se retraíram, também, como homens que nada mais podiam fazer, deixando esse povo degenerado entregue a seu destino.
Vimos então uma estranha cena. Surgiu um reformador, homem de singular vigor de espírito e de corpo, que sobrepujou a todos os demais. Tinha ele riquezas, influência e poderes que mais tarde pareceram não ser inteiramente deste mundo. Vimo-lo numa espécie de êxtase, comunicando-se com espíritos superiores. Fora ele quem utilizara toda a ciência de seu povo — uma ciência que ultrapassava tudo o que modernamente se conhece — na construção de uma arca de refúgio contra a catástrofe que se aproximava. Vimos miríades de operários ocupados neste trabalho e as paredes lentamente se elevando, enquanto multidões de cidadãos ociosos observavam motejando este excesso inútil de precauções. Vimos outros que pareciam discutir com ele e dizer-lhe que se tivesse quaisquer receios ser-lhe-ia mais fácil fugir para uma terra mais segura. Sua resposta, ao que parecia, foi que havia alguns que deveriam ser salvos no último momento e que por sua causa ele deveria permanecer no novo templo de segurança. Enquanto isso ele reunia ali aqueles que o haviam seguido e aí os conservava, pois ele próprio não sabia o dia nem a hora em que se dariam estes sucessos, se bem que forças sobrenaturais o houvessem assegurado da sua proximidade. Por isso, quando a arca ficou pronta e as portas foram experimentadas com êxito, pôs-se pacientemente à espera do castigo, com sua família, seus amigos, seus discípulos e seus servos. E o castigo veio finalmente. Era um espetáculo amedrontador, mesmo visto numa tela. Só Deus sabe o que poderia ter sido na realidade. Primeiro vimos uma tremenda montanha de água elevar-se a incrível altura acima de um mar tranqüilo. Em seguida vimos aquela colina rebrilhante de espumas progredir milha após milha, numa velocidade cada vez maior. O que nos parecia serem duas pequeninas embarcações oscilando no topo daquela onda gigantesca, vimos ao se aproximar mais serem duas galeras desarvoradas. Vimo-la bater na praia e varrer a cidade, e as casas abaterem-se à sua frente como um campo de trigo diante de um furacão. Vimos o povo sobre os tetos das casas a olhar a morte que se avizinhava, com os rostos contorcidos de terror, os olhos dilatados, as bocas contraídas, mordendo os punhos e lamentando-se num pavor insano. Os mesmos homens e mulheres que haviam zombado dos avisos clamavam agora aos céus por piedade, arrastando os rostos no chão ou ajoelhando-se com os braços estendidos numa súplica desesperada. Não havia tempo para se chegar à arca, que ficava para fora da cidade, mas milhares de pessoas refugiaram-se na cidadela, que ficava num plano mais elevado, e as paredes do imenso edifício ficaram apinhadas de gente. Mas subitamente o castelo começou a afundar. Tudo começou a afundar. A água penetrara nos remotos recessos da terra e o fogo central a transformara em vapores, cuja enorme força de expansão havia abalado os próprios fundamentos do continente. Cada vez mais mergulhava a cidade e um grito de horror escapou-se de nossos peitos e de todo o auditório, à vista do terrível espetáculo. O dique quebrou-se em dois e desapareceu. O alto farol sumiu-se nas ondas. Por algum tempo ainda, viram-se os tetos como séries de recifes, até que finalmente estes também mergulharam. Só ficara a cidadela na superfície, como um navio monstruoso, que finalmente também mergulhou no abismo, obliquamente, com uma cabelugem de mãos agitando-se desesperadamente no ar. O terrível drama se consumara e um lençol ininterrupto de águas cobria agora todo o continente, águas que não traziam um ser vivo em sua superfície e que nos seus gigantescos turbilhões e redemoinhos mostravam ainda destroços da tragédia jogados de um para outro lado; homens e animais mortos, cadeiras, mesas, artigos de vestuário, chapéus flutuando e fardos de mercadorias, tudo agitando-se e turbilhonando em desordem. Lentamente, porém, voltou a tranqüilidade, e apenas uma extensão de água lisa e brilhante como mercúrio vivo, iluminada por um sol pálido e baixo, nos indicava agora o túmulo da nação que Deus condenara.