Mas, como dizia, Scanlan entrou em nosso quarto com notícias de que algo sensacional ocorrera.
— Acaba de chegar um deles tão agitado que se esqueceu completamente de tirar sua roupa de vidro e levou falando vários minutos antes de compreender que ninguém o poderia escutar. Depois foi só tá-tá-tá-, tá-tá-táp, tá-tá-tá, até perder o fôlego e agora todos o estão seguindo para a câmara de saída. Eu é que vou também para a água, pois deve haver alguma coisa lá digna de ser vista.
Precipitando-nos para fora, vimos nossos amigos caminhando apressadamente pelo corredor a gesticular agitada-mente e juntando-nos à procissão fazíamos dali a pouco parte da multidão que se adiantava apressadamente pelo fundo do mar, conduzida pelo agitado mensageiro. Caminhavam com uma pressa tal que se nos tornava difícil segui-los mas como traziam consigo suas lanternas elétricas mesmo se ficássemos para trás poderíamos orientar-nos pela claridade das mesmas. Seguimos como da outra vez ao longo dos rochedos de basalto até chegarmos a um ponto em que uma série de degraus gastos pelo uso conduzia ao seu cimo. Subindo por eles, encontramo-nos numa região acidentada, cheia de elevações de pedra e profundos abismos que embaraçavam o caminho. Atravessando esta região atravancada de formações vulcânicas, chegamos a uma planície circular que rebrilhava à luz fosforescente do fundo do oceano, e bem no meio dela deparamos com um espetáculo que me imobilizou de espanto. Olhando para meus companheiros, pude ver pela expressão de seus rostos que partilhavam plenamente da minha emoção.
Semi-enterrado no lodo via-se um vapor de grande calado. Estava ligeiramente adernado, com a chaminé quebrada e uma das extremidades levantada; seu mastro de traquete fora arrancado, mas quanto ao resto o navio estava intato e tão polido que parecia ter acabado de deixar os estaleiros. Corremos para ele e dali a pouco nos achávamos sob a proa. Podes bem imaginar qual não teria sido nossa emoção quando lemos o nome «Stratford, London» aí escrito. Nosso navio nos seguira ao Pélago de Maracot.
Afinal, depois do primeiro choque, o caso não nos pareceu tão incompreensível. Lembramo-nos do aviso do comandante, das velas colhidas do experiente veleiro norueguês e da ameaçadora nuvem negra que víramos no horizonte. Deveria ter-se desencadeado um súbito ciclone de enorme violência, que pusera a pique o «Stratford». Era evidente que toda a sua tripulação deveria estar morta, pois a maioria dos escaleres ainda pendia das serviolas em diferentes estados de destruição. De qualquer modo, qual o escaler que resistiria a tal furacão? A tragédia deveria ter ocorrido uma ou duas horas após nosso próprio desastre. Talvez a sonda que víramos tivesse sido lançada pouco antes de o temporal desabar. Era terrível e ao mesmo tempo extravagante que ainda estivéssemos vivos, enquanto que os mesmos que haviam lamentado nossa perda já estivessem mortos. Não podíamos saber se o navio se achava ali há muito tempo ou se o atlante o encontrara pouco tempo depois que fora aí ter.
O pobre Howie, o capitão, ou pelo menos o que restava dele, estava ainda em seu posto sobre a ponte de comando, firmemente seguro ao peitoril por suas mãos crispadas. Seu corpo e o de três foguistas eram os únicos que haviam afundado com o navio. Fizemos removê-los um por um sob nossa direção e enterrá-los sob o lodo, com uma coroa de flores marinhas sobre suas sepulturas. Dou estes detalhes para que possam servir de algum conforto à Sra. Howie em sua dor. Os nomes dos foguistas eram-nos desconhecidos.
Enquanto cumpríamos este dever, os atlantes enxameavam sobre o navio. Olhando para cima vi-os por toda parte, como camundongos sobre um queijo. Sua agitação e curiosidade bem mostravam que este era o primeiro navio moderno que viam — ou possivelmente o primeiro vapor. Descobrimos mais tarde que o aparelho que renovava o ar no interior de suas campanas de vidrina não lhes permitia ficar fora do edifício mais que algumas horas, e assim suas possibilidades de fazer reconhecimentos sobre o leito do oceano estava limitada a um restrito número de milhas de sua base central. Puseram imediatamente mãos à obra, tratando de aproveitar do navio tudo o que lhes poderia ser de utilidade. O longo tempo, contudo, que este trabalho exigia, fez com que até hoje ainda não esteja concluído. Ficamos também satisfeitos por podermos voltar às nossas cabinas e trazer de lá os artigos de vestuário e livros que não se achassem irremediavelmente estragados.
Entre os objetos que conseguimos salvar do «Stratford» encontrava-se o livro de bordo, que fora escriturado pelo capitão até o dia de nosso desaparecimento. Era realmente estranho que nós o estivéssemos lendo, e que ele, que o escrevera, estivesse morto. O último registro rezava assim:
«3 de outubro. Os três temerários exploradores desceram hoje, contra a minha vontade e conselhos, ao fundo do oceano, dentro de seu aparelho e o acidente que eu previra teve lugar. Deus guarde suas almas. Eles desceram às onze da manhã com alguma relutância de minha parte, pois parecia avizinhar-se uma tempestade. Desejava ter agido de acordo com meu primeiro impulso, mas isso só serviria para adiar a inevitável tragédia. Despedi-me de cada um deles com a convicção de que não os veria mais. Durante algum tempo tudo correu bem e às onze e três quartos eles haviam atingido a profundidade de trezentas toesas, tendo então encontrado o fundo. O Dr. Maracot enviou-me várias mensagens e tudo parecia em ordem quando repentinamente ouvi sua voz falando agitadamente e notei abalos violentos do cabo. Dali a alguns instantes este arrebentava. É bem possível que estivessem a este tempo sobre um profundo abismo, pois, a uma ordem do doutor o navio havia navegado lentamente para a frente. Os tubos condutores de ar continuaram a desenrolar-se por uma distância que calcularia em meia milha, quando por sua vez rebentaram. É esta a última notícia que jamais poderemos ter do Dr. Maracot, Sr. Headlei e Scanlan.
Merece todavia ser recordada uma circunstância das mais extraordinárias, cuja verdadeira significação ainda não tive tempo de avaliar, pois com este temporal que se aproxima há muita coisa para me distrair a atenção. Uma sondagem fora feita na mesma ocasião e a profundidade que observamos foi de vinte e seis mil e seiscentos pés. Como é lógico, o peso ficara no fundo, mas o cabo fora içado e, por mais incrível que possa parecer, encontrou-se amarrado bem na extremidade do mesmo o lenço do Sr. Headlei, com seu nome escrito num ângulo. Toda a tripulação se acha assombrada e ninguém pode compreender como tal coisa se deu. No meu próximo registro pode ser que tenha r alguma coisa mais a dizer a este respeito. Permanecemos ali algumas horas na esperança de que alguma coisa viesse à superfície e recolhemos o cabo da caixa de aço, cuja extremidade apresentava sinais de ruptura violenta. Preciso agora cuidar do navio, pois nunca vi um céu mais ameaçador e o barômetro marca 28,5, estando a descer rapidamente.»
E foram essas as últimas notícias que nos vieram das mãos de nossos companheiros. Logo depois um ciclone terrível deveria ter desabado sobre eles e posto a pique o navio.
Permanecemos no mesmo até que uma certa sensação de abafamento e um peso sobre o peito nos avisou de que era tempo de regressarmos. Foi então que em nossa viagem para casa uma aventura inesperada nos mostrou os grandes perigos a que aquele povo submarino estava exposto, explicando a causa por que seu número, apesar do tempo decorrido, não era maior. Incluindo os escravos gregos, cremos que não seriam mais que quatro ou cinco mil pessoas. Havíamos descido a escada e começáramos a contornar o matagal de plantas marinhas que cerca os rochedos de basalto, quando Manda apontou agitadamente para cima e acenou furiosamente para um dos nossos companheiros que se achava um pouco afastado do grupo. Ao mesmo tempo ele e os que o cercavam correram para o abrigo de umas altas pedras, arrastando-nos consigo. Só quando já nos achávamos refugiados lá com eles é que vimos a causa do alarma. A alguma distância acima de nós, descendo rapidamente, vimos um grande peixe de forma extravagante. Parecia um grande colchão de penas flutuante, macio e espesso, com a face inferior branca e uma longa franja vermelha, cuja vibração o propelia através da água. Parecia não ter boca nem olhos, mas logo mostrou que se achava terrivelmente alerta. O nosso companheiro que se distanciara mais correu para o mesmo abrigo que nós, mas já era tarde. Vi seu rosto convulso de terror ao prever a sorte que o esperava. Aquele ente horripilante abateu-se sobre ele, envolvendo-o por todos os lados e dando horríveis repelões, como se estivesse malhando seu corpo contra as rochas de coral para reduzi-lo a pedaços. A tragédia se estava passando a poucas jardas de distância de nós e contudo nossos companheiros estavam tão transtornados pelo inesperado fato que pareciam destituídos de todo o poder de ação. Foi Scanlan que se precipitou para fora, e, pulando sobre as largas costas do animal, malhadas de vermelho e pardo, enterrou em seus tecidos fofos a extremidade pontuda de sua vara metálica.