Eu havia seguido o exemplo de Scanlan e finalmente Maracot e todos os outros atacaram o monstro que se escapou vagarosamente, deixando atrás de si um rasto de uma excreção oleosa e pegadiça. Nosso auxílio, contudo, chegara tarde demais, pois os golpes do grande peixe haviam quebrado o invólucro de vidrina do atlante e este se afogara. Foi um dia de luto aquele em que carregamos seu corpo inanimado para o refúgio, mas foi também um dia de triunfo para nós, pois nossa intervenção pronta elevara-nos grandemente no conceito de nossos companheiros. Quanto àquele estranho peixe, o Dr. Maracot nos garantiu que era um espécime análogo ao chamado peixe cobertor, já bem conhecido dos ictiólogos, mas de proporções extraordinariamente maiores.
Falei deste animal porque sucedeu havermos presenciado uma tragédia causada por ele, mas eu poderia — e talvez mesmo o faça — escrever um livro sobre as singulares variedades de vida com que ali deparamos. O vermelho e o negro são as cores que prevalecem nos animais das grandes profundidades; quanto à vegetação é de um verde oliva dos mais pálidos e de fibras tão rígidas que raramente são arrastadas à tona por nossas redes de arrasto, de modo que a ciência veio a crer por isso que o leito do oceano é completamente desprovido dela. Numerosos seres marinhos são lindíssimos, mas outros são tão horrivelmente grotescos que parecem visões de delírio e tão ameaçadores como nenhum animal terrestre. Vi uma arraia negra de trinta pés de comprimento que se utilizava para o ataque de sua longa cauda, de que bastaria um só golpe para matar qualquer criatura viva. Vi também um animal parecido com uma rã, de olhos verdes e salientes, que se resumia quase a uma ávida boca com um desmedido estômago atrás. Encontrá-lo é morte certa, a não ser que se tenha uma lanterna elétrica com que o repelir. Vi a enguia vermelha cega, que vive entre as rochas e mata pela emissão de um veneno e vi também o gigantesco escorpião marinho, um dos terrores do pélago e o peixe elétrico que se embosca nos matagais marinhos.
Uma vez também tive oportunidade de ver a verdadeira serpente marinha, um animal que raramente tem aparecido a olhos humanos, pois vive nas grandes profundidades e só é vista na superfície quando alguma convulsão submarina a faz sair de seu habitai. Duas delas passaram nadando, ou melhor, rastejando por nós um dia, enquanto Mona e eu nos ocultávamos entre ramificações de lamelárias. Eram enormes — de uns dez pés de altura por duzentos de comprimento, pretas em cima, de um branco de prata na face inferior, com uma grande franja sobre as costas e olhos pequenos, pouco maiores que os de um boi. Desta e de muitas outras coisas encontrar-se-á detalhada descrição no relatório do Dr. Maracot, se algum dia for encontrado.
As semanas se sucediam às semanas. Nossa nova vida tornara-se-nos agradável com o tempo e lentamente começávamos a aprender desta língua há muito esquecida o suficiente para podermos conversar um pouco com nossos companheiros. Há no refúgio inumeráveis objetos para estudo e Maracot já conseguiu aprender de sua velha química o suficiente para revolucionar todas as idéias terrestres sobre o assunto, se conseguir transmitir seus conhecimentos. Entre outras coisas eles conseguiram meios de desintegrar o átomo, e se bem que a energia desprendida seja menor que a prevista por nossos cientistas, mesmo assim põe-lhes em mãos um grande reservatório de força. Seus conhecimentos sobre as propriedades e a natureza do éter estão também muito mais adiantados que os nossos e mesmo aquela estranha transformação do pensamento em imagens, por cujo meio lhes havíamos contado nossa história e eles a sua própria, nada mais era, em última análise, que a materialização de vibrações etéreas.
Todavia, apesar de seus conhecimentos profundos, havia certos pontos relacionados com modernas descobertas científicas que haviam escapado à atenção de seus antepassados.
Coube a Scanlan demonstrar este fato. Durante várias semanas o víramos num estado de desusada agitação, a custo contida, como quem carrega consigo um grande segredo, e não raro o surpreendíamos a rir consigo mesmo. Apenas o víamos de vez em quando durante este período, pois ele estava extremamente ocupado e seu único amigo e confidente era um atlante de nome Berbrix, encarregado de uma seção dos maquinismos. Scanlan e Berbrix, se bem que quase só se comunicassem por meio de sinais e tapas amistosos nas costas, haviam-se tornado muito bons amigos e agora viviam continuamente juntos. Uma tarde Scanlan nos apareceu radiante.
— Doutor, disse ele a Maracot, arranjei uma coisa nova para mostrar a essa gente. Eles nos mostraram uma ou duas coisas interessantes e parece que já é tempo de retribuirmos. Que acha de se arranjar uma reunião amanhã à noite para uma exibiçãozinha?
— Jazz ou charleston? perguntei.
— Que charleston nada! Espere que verá. Será um sucesso formidável. Mas basta de palavrórios por enquanto, Bo. Amanhã verá o que é.
De conformidade com isto, a comunidade foi reunida na noite seguinte no salão grande. Scanlan e Berbrix se achavam na plataforma, radiantes de orgulho. Um deles apertou um botão e no mesmo instante…
— «Transmite 2L.O.», gritou uma voz clara. «De Londres para as Ilhas Britânicas. Previsão do tempo». Seguiram-se as fórmulas habituais sobre depressões e anticiclones. «Boletim de Notícias. Sua Majestade o Rei inaugurou esta manhã uma nova ala no Hospital de Crianças de Hammersmith…» e assim por diante, de modo usual. Parecia achar-monos de novo na velha Inglaterra laboriosa, entregue como de costume ao seu trabalho diário e com as largas costas curvadas sob o peso de suas dívidas de guerra. Ouvimos em seguida as notícias do estrangeiro e de esportes. O velho mundo continuava sempre o mesmo. Nossos amigos atlantes ouviam cheios de espanto, mas sem compreender. Mas quando, após o noticiário, a banda da Guarda rompeu os primeiros acordes da marcha do Lohengrin, um verdadeiro clamor de entusiasmo elevou-se do povo e era engraçado vê-los correr para a plataforma, remexendo as cortinas e olhando atrás das telas para descobrir donde vinha a música. Sim, nós imprimimos imperecíveis sinais nossos naquela civilização submarina.
— Não, doutor, disse Scanlan mais tarde. Não me era possível fazer uma estação transmissora. Eles não têm os materiais necessários nem eu os conhecimentos. Mas lá em casa eu sabia manejar um aparelho de duas válvulas meu, e com uma antena ao lado dos varais de roupa no terreiro pegava qualquer estação dos Estados Unidos. Parecia-me absurdo que com toda esta eletricidade em mãos e com a habilidade desta gente em trabalhos de vidro, não fôssemos capazes de construir uma coisa qualquer capaz de apanhar umas ondas de rádio, pois decerto elas atravessariam a água com tanta facilidade como o ar. Berbrix quase teve um ataque quando peguei uma estação pela primeira vez, mas agora parece que já está acostumado.