Durante estas primeiras semanas, procurei captar as simpatias de Maracot, o que não era fácil tarefa. Em primeiro lugar ele é o homem mais distraído do mundo. Com certeza ainda te lembrarás de como sorriste quando ele deu ao moço do elevador um níquel de um pêni supondo que se achava num bonde. A maior parte do tempo está perdido em seus pensamentos e mal parece consciente do lugar em que está e daquilo que está fazendo. Além disso ele é reservado ao último ponto. Está continuamente às voltas com seus papéis e mapas, que ele rapidamente guarda quando sucede eu entrar na cabina. Creio firmemente que o homem tem algum plano secreto em mira, mas que enquanto tivermos de tocar em algum porto não o revelará a ninguém. É esta a impressão que tenho e penso que Bill Scanlan é da mesma opinião.
— Diga-me, Sr. Headlei — disse-me ele uma tarde em que me achava no laboratório dosando a salinidade de algumas amostras de água marinha obtidas em nossas sondagens hidrográficas — qual lhe parece que seja a tenção desse homem? Que supõe que ele pretenda fazer?
— Suponho, respondi, que faremos o mesmo que o «Challenger» e uma dezena de outros navios fizeram antes de nós: acrescentaremos algumas espécies mais à lista de peixes conhecidos e adicionaremos novas indicações aos mapas batimétricos.
— Qual, não acredito, disse ele. Se é essa a sua opinião, receio que tenha logo de mudá-la. Antes de mais nada, para que estou eu aqui?
— Para a eventualidade de haver algum desarranjo nas máquinas, arrisquei.
— Que máquinas nada! As máquinas estão a cargo de MacLaren, o engenheiro escocês. Não, Sr. Headlei, não seria para um serviço desses que o pessoal de Merribank iria emprestar seu melhor mecânico. Não será para nada que estou ganhando cinqüenta libras por semana. Venha comigo que lhe mostrarei para que é.
Tirou uma chave do bolso, abriu uma porta dos fundos do laboratório e descemos uma escada que ia ter a um repartimento do porão quase vazio, onde só se entrevia parte de quatro grandes objetos polidos por entre a embalagem de suas grandes caixas. Eram quatro lâminas de aço, de margens providas de fechos e charneiras de primoroso acabamento. Cada folha tinha cerca de dez pés quadrados e uma polegada e meia de espessura, com uma abertura circular de dezoito polegadas no centro.
— Que diabo será isso? perguntei.
A fisionomia expressiva de Bill Scanlan — sua aparência é intermediária entre a de um cômico de «vaudeville» e a de um pugilista profissional — abriu-se num sorriso ao ver meu espanto.
— É para isto que estou aqui, meu bebê — Sr. Headlei, quero dizer. Há lá naquela caixa um fundo de aço para a coisa. Além disso há uma coberta — uma espécie de abóbada — e uma grande roldana para uma corrente ou cabo. Olhe agora aqui o fundo do navio.
Havia aí um espaço coberto por um quadrado de madeira provido de parafusos salientes nos ângulos, o que mostrava ser o mesmo destacável.
— Há um duplo fundo no navio, disse Scanlan. É bem possível que este sujeito esteja louco varrido; seja como for, acho que não nos revelou todos os seus planos. Se bem compreendo o homem, creio que ele pretende construir uma espécie de quarto — já vi as janelas noutro lugar do porão — e baixá-lo pelo fundo do navio. Além disso ele trouxe também projetores elétricos e creio que o seu plano é projetar sua luz pelos postigos para observar o que se passa em torno.
— Se fosse esse o seu desejo, ele poderia ter posto uma lâmina de cristal no fundo do navio, à moda dos botes da Ilha Catalina, observei.
— É mesmo, disse Bill Scanlan cocando a cabeça. Não compreendo ainda direito o que é que esse homem quer. O que é certo é que me mandaram trabalhar sob suas ordens e ajudá-lo no que puder. Ele até agora não disse nada, por isso eu também fiz o mesmo, mas estou à espreita e creio que se isto ainda se demorar um pouco ficarei sabendo tudo por minha própria conta.
Foi assim que cheguei pela primeira vez à borda de nosso mistério. Depois disto tivemos alguns dias de mau tempo e em seguida fizemos algumas pescas de arrasto em grandes profundidades a noroeste do Cabo Juba, logo para fora do Declive Continental, fazendo ao mesmo tempo, leituras de temperatura e dosagens dos sais da água. É uma ocupação divertida lançar-se uma rede de arrasto Peterson, com seus vinte pés de extensão a barrar o caminho de tudo o que vem em sua direção — algumas vezes à profundidade de um quarto de milha — apanhando de cada vez um lote diferente de peixes desse oceano em que cada profundidade tem seus habitantes próprios, como se fosse uma estratificação de continentes distintos. Algumas vezes trazíamos do fundo meia tonelada de uma geléia viva, clara e cor-de-rosa, ou então um punhado de limo de pterópodos que sob o microscópio revelava milhões de pequeninas esférulas reticuladas cercadas de matéria amorfa. Não te quero maçar com a enumeração dos brotulídeos e macrurídeos, ascídias, holotúrias, polizoários e equinodermas que encontramos — mas fica em todo o caso sabendo que a seara do mar é grande e que fomos diligentes ceifadores. Mas continuava a ter sempre a impressão de que Maracot não fazia aquilo com entusiasmo e que outros planos dormitavam naquela sua esquisita cabeça alta e estreita de múmia egípcia. Tudo aquilo me parecia ser apenas uma simples experimentação de homens e aparelhos para verificar se estavam em condições de executar o verdadeiro objetivo da expedição.
Tinha chegado a este ponto de minha carta quando resolvi descer em terra para um último giro, pois partiremos amanhã bem cedo. Foi bom talvez ter feito isto, pois travara-se no cais uma tumultuosa disputa em que se achavam envolvidos o Dr. Maracot e Bill Scanlan. Bill é rapaz resoluto e não tem medo de nada, mas com meia dúzia de mandriões armados de faca ao seu redor as coisas não pareciam muito promissoras para eles e já era tempo que eu interviesse. A razão de tudo fora o Dr. Maracot haver alugado uma dessas coisas que eles chamavam de carruagem e percorrido mais de metade da ilha observando suas formações geológicas, tendo-se esquecido completamente de que não trazia dinheiro consigo. Quando chegou o momento de pagar ele não conseguira fazer-lhes compreender o caso e o cocheiro se apoderara de seu relógio como garantia. Isto fez Bill Scanlan entrar em ação e pelo pé em que estavam as coisas é bem possível que fossem ambos parar no chão com as costas como pregadeiras de alfinetes se eu não tivesse resolvido o assunto com um ou dois dólares para o condutor do veículo e uma nota de cinco dólares para o homem que Bill Scanlan pusera de olho inchado. Tudo assim terminou bem e foi esta a ocasião em que Maracot me pareceu mais humano.
Quando chegamos ao navio ele levou-me para a pequena cabina que reservara para si próprio e agradeceu minha intervenção.
— A propósito, Sr. Headlei, disse-me ele; creio que o senhor não é casado, não é verdade?
— Não, respondi. Sou solteiro.
— Ninguém depende de sua pessoa?
— Ninguém.
— Muito bem! disse ele. Não lhe contei o verdadeiro objetivo desta viagem, meu amigo, porque desejava por certas razões conservá-lo em segredo. Uma dessas razões é que receava que outros me precedessem. Quando se têm planos científicos em mira, deve-se recear que suceda o mesmo que se passou entre Scott e Amundsen. Se Scott tivesse guardado o seu segredo, como fiz, seria ele, e não Amundsen que chegaria primeiro ao Pólo Sul. Quanto a mim, minha meta é tão importante como o Pólo Sul e por isso resolvi guardar a máxima reserva. Mas agora, que estamos nas vésperas de nossa grande aventura, nenhum rival terá tempo para apropriar-se de meus planos. Amanhã partiremos para o nosso verdadeiro objetivo.