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Procurarei agora expor em sua devida ordem algumas das estranhas coisas que observamos naquele mundo maravilhoso, e também algumas das aventuras que nos sucederam até depararmos com a maior de todas elas — uma que deixará para sempre sua impressão sobre todos nós — a volta do Senhor do Torvo Semblante. Sob certos pontos de vista, desejaria que nos tivéssemos demorado mais tempo no Pélago de Maracot, pois lá ainda existiam para nós muitos mistérios. Além disso, já estávamos aprendendo rapidamente a língua que falavam, de modo que logo teríamos muito maior facilidade para obter informações. - A experiência ensinara a este povo a distinguir o terrível do inofensivo. Um dia lembro-me de que houve um súbito alarma. Acompanhando o exemplo de nossos hóspedes, todos nós vestimos nossas campanas de oxigênio e lançamo-nos a correr pelo leito do oceano, se bem que a razão de tudo isto nos fosse um mistério. Não havia porém engano possível quanto à expressão de horror e agitação que havia nos rostos dos que nos cercavam. Quando saímos para a planície encontramos um grande número de mineiros gregos que se dirigiam a toda a pressa para a porta da nossa colônia. Haviam caminhado com tal afobamento e estavam tão cansados que muitos caíam no lodo completamente esgotados, e era mais que evidente que constituíamos uma expedição de socorro, com o objetivo de recolher estes e apressar os retardatários. Não vimos nenhuma arma em poder de nossos companheiros nem sinais que denunciassem propósitos de resistência contra o perigo que se avizinhava. Logo que o último mineiro foi empurrado através da porta nós voltamos o olhar para o caminho por que haviam vindo. Tudo o que podíamos lobrigar eram duas nuvens esverdeadas, lembrando fogos-fátuos, luminosas no centro, apresentando radiações para as bordas, que pareciam antes derivar que mover-se em nossa direção. Ao vê-las assim claramente, se bem que estivessem ainda a meia milha de distância, nossos companheiros foram tomados de pânico e puseram-se a bater na porta, ansiosos por entrar o mais depressa possível. Era realmente atemorizador ver estes dois entes maléficos aproximando-se, mas as bombas trabalhavam rapidamente e dali a pouco tempo nos achávamos novamente em segurança. Acima da porta havia um grande bloco de cristal transparente, de dez pés de comprimento por dois de largura, com luzes colocadas de modo tal que lançavam um forte clarão para o exterior. Subindo em escadas conservadas ali especialmente para esse fim, vários dentre nós, inclusive eu mesmo, ficamos à espreita. Vi aqueles dois estranhos e bruxuleantes círculos de luz pararem em frente da porta. Vendo isto, os atlantes de um e de outro lado de mim estremeceram de pavor. Subitamente um daqueles entes sombrios elevou-se com sua trêmula luminosidade através da água e dirigiu-se para a nossa janela de cristal. Imediatamente meus companheiros puxaram-me para fugir ao seu campo de visibilidade, mas parece que devido à minha negligência parte de meus cabelos não ficou a salvo da influência maléfica — qualquer que fosse ela — emitida por estes estranhos seres. Possuo até hoje uma mecha deles completamente branca desde esse dia.

Só muito tempo depois é que os atlantes ousaram abrir a porta do refúgio, e quando por fim foi enviado um explorador, este partiu entre apertos de mão e tapas amistosos nas costas, como uma pessoa que pratica uma meritória façanha. A notícia que trouxe é de que não havia mais perigo, e logo a alegria voltou à comunidade e esta estranha visita pareceu ser esquecida. Somente ficamos sabendo, por ouvir a palavra «Praxa» pronunciada em vários tons de terror, que era este o nome daqueles entes. A única pessoa que de fato se alegrou com o incidente foi o Professor Maracot, ao qual nos custou impedir que saísse à sua procura.

«Uma nova espécie de vida, parte orgânica, parte gasosa e visivelmente inteligente», comentou ele. «Um espírito saído do inferno» observou Scanlan menos cientificamente.

Saindo dali a dois dias para uma expedição de estudos, quando caminhávamos entre os ervaçais das plantas marinhas capturando em nossas redes de mão espécimes de pequenos peixes, demos subitamente com o corpo de um dos operários das minas de carvão, que sem dúvida fora surpreendido em sua fuga por aqueles estranhos entes. A campana de vidro fora quebrada — o que exigia enorme força, pois a substância de que é feita é extraordinariamente resistente, como viram quando quiseram tirar meu primeiro documento. Os olhos do mineiro haviam sido arrancados, mas era este o único sinal de violência que se notava em seu corpo.

— Um gastrônomo de gostos bem delicados! disse o professor depois de nosso regresso. Existe na Nova Zelândia uma ave de rapina que mata o cordeiro apenas para retirar um pedaço particular de gordura que há acima dos rins. Este animal mata então o homem por causa dos olhos. Quer nos céus quer nas águas a natureza apenas conhece uma lei — a da crueldade fria.

Tivemos numerosos exemplos dessa terrível lei nas profundezas do oceano. Lembro-me por exemplo de que várias vezes observamos um curioso sulco no lodo batibiano, como se um barril cheio tivesse sido rolado sobre ele. Apontamo-lo para os nossos companheiros e quando pudemos interrogá-los tentamos fazer com que nos contassem alguma coisa sobre esse animal. Como seu nome, nossos amigos repetiram várias vezes um daqueles encadeamentos ásperos de sílabas que tão freqüentemente se encontram na linguagem dos atlantes, e que não podem ser reproduzidos nem por línguas de europeus nem pelo nosso alfabeto. Krixchok é talvez uma aproximação dessa palavra. Quanto ao seu aspecto, utilizamo-nos para sabê-lo do refletor do pensamento, como,sempre fazíamos em tais conjunturas e por cujo intermédio nossos amigos nos podiam dar uma clara idéia do que estava em seus espíritos. Por este meio mostraram-nos eles a imagem de um estranho ser marinho que o professor apenas pôde classificar como uma gigantesca lesma do mar. Parecia ser um animal de grande tamanho, em forma de salsicha, com olhos situados na extremidade de pedúnculos e possuindo um basto revestimento de pêlos ou cerdas. Enquanto nos mostravam esta imagem, nossos amigos exprimiam-nos por gestos o horror e repulsa que experimentavam.

Mas tudo isto, como poderia prever quem conhecesse bem Maracot, só serviu para ainda mais inflamar sua curiosidade científica, tornando-o ainda mais ansioso por determinar de um modo exato a espécie deste monstro desconhecido. Por isso, não fiquei surpreendido quando em nossa primeira excursão ele parou no ponto em que se via o rasto do mesmo sobre o lodo e voltou-se deliberadamente para a enrediça de plantas marinhas e rochas basálticas donde parecia ter vindo. No momento em que deixamos a planície, porém, perdemos de vista o rasto, mas as rochas formavam naquele ponto um abrigo natural que deveria provavelmente conduzir à toca do monstro. Estávamos todos os três armados com o varão metálico que os atlantes geralmente carregam consigo, mas eles me pareciam armas bem frágeis para se enfrentarem perigos desconhecidos. O professor, porém, avançou na frente e o único recurso que tínhamos era acompanhá-lo.

Aquela garganta de rochas estendia-se para cima, tendo as paredes formadas de enormes blocos de formação vulcânica e o chão coberto de uma profusão de longas lamelárias vermelhas e negras, que são características das extremas profundidades oceânicas. Um milheiro de belas ascídias e equinodermas de cores vivas e formas caprichosas espreitava dentre esta vegetação povoada de estranhos crustáceos e baixas formas da vida animal. Avançávamos lentamente, pois não é fácil caminhar nas profundezas marinhas, ainda mais tendo-se que vencer uma subida escarpada. Subitamente, porém, avistamos o animal que procurávamos e a visão não era das mais animadoras.