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Estava com o corpo saído a meio de sua toca, que era uma escavação num penedo basáltico. Viam-se cerca de cinco pés de um corpo peludo e notamos o mover de seus olhos grandes, como pires, amarelos e brilhantes como ágatas, girando lentamente sobre seus longos pedículos ao pressentir nossa aproximação. Devagar, então, começou a sair de seu abrigo, agitando seu corpo ao caminhar como uma lagarta. Em dado momento levantou a cabeça a uns quatro pés do solo como para ter uma visão melhor de nós e observei então que tinha presa de cada lado do pescoço uma formação semelhante à sola de um sapato de tênis, ambas da mesma cor e tamanho, e de aspecto sulcado. Não conseguia conjeturar o que significaria isso, mas logo iríamos ter uma lição prática sobre sua utilidade.

O professor enristara seu varão em posição ofensiva e pela expressão resoluta de seu rosto vi logo que a esperança de obter um espécime raro varrera todo o temor de seu espírito. Scanlan e eu, porém, não estávamos assim tão confiantes, mas não podíamos abandonar o velho cientista, por isso conservamo-nos firmemente ao seu lado. O monstro, após aquele longo olhar, começou lenta e desajeitadamente a descer a encosta, arrastando-se entre as rochas e levantando de tempos a tempos seus olhos pediculados para ver o que fazíamos. Vendo-o adiantar-se tão lentamente, sentíamo-nos em segurança, pois a qualquer momento poderíamos fugir deixando-o para trás. E mal sabíamos no entanto que nos achávamos a dois passos da morte!

Foi certamente um aviso da Providência. O monstro continuava em seu avanço lerdo e sorrateiro e deveria achar-se a umas cinqüenta j ar das de nós quando um grande peixe saiu do matagal das algas que ficava ao lado da garganta e avançou lentamente por ela. Achava-se, porém, a meio caminho entre o monstro e nós quando deu subitamente um salto convulsivo, voltando-se de ventre para cima, e caiu morto no chão. No mesmo instante todos nós sentimos um estremeção estranho e desagradável percorrer-nos o corpo, ao mesmo tempo que nossos joelhos cediam ao nosso peso. O velho Maracot era tão prudente quanto audacioso e compreendera num momento a situação, desistindo da caçada. Estávamos em frente de um animal que lançava descargas elétricas para matar sua presa, e nossos varões metálicos eram tão inúteis contra ele como contra uma metralhadora. Se não fosse a feliz coincidência de aquele peixe revelar sua tática, teríamos esperado até que ele se achasse a uma distância da qual poderia despejar sobre nós toda a carga de sua bateria, que seguramente nos mataria. Raspamo-nos o mais rapidamente que pudemos, resolvidos para o futuro a deixar a gigantesca lesma em paz.

Eram estes alguns dos mais terríveis perigos do pélago. Outro, ainda, era o pequeno e terrível Hydrops ferox, como o batizou o professor. Era um peixe vermelho, pouco maior que um arenque, e possuía uma grande boca e uma formidável fileira de dentes. Era inofensivo nas circunstâncias ordinárias, mas o derramamento de sangue, mesmo de quantidades mínimas, atraía-o num instante e não havia então salvação possível para a vítima, que era cercada por legiões de atacantes. Vimos certa vez um horrível espetáculo nos poços de retirar carvão, onde um escravo teve a infelicidade de cortar a mão. Num instante, vindos de todos os lados, milhares de peixes caíam sobre ele. Inutilmente este se atirou ao chão, lutando desesperadamente; inutilmente seus companheiros horrorizados os golpearam com suas pás e picaretas. A parte inferior de seu corpo, abaixo de sua campana, dissolveu-se à nossa vista sob uma nuvem vibrante de peixes. Num momento víamos um homem. Um instante depois já só distinguíamos uma massa sangrenta com brancos ossos salientes. Dali a um minuto só se viam os ossos abaixo da cintura: era um meio esqueleto deitado no fundo do mar. Fora um espetáculo tão horrível que ficamos todos profundamente abalados. Scanlan caiu mesmo com um desmaio, dando-nos grande trabalho para o transportarmos para o refúgio.

Mas os estranhos espetáculos que presenciávamos nem sempre eram horríveis. Lembro-me de um, por exemplo, que nunca se apagará de nosso espírito. Foi numa daquelas excursões que gostávamos de fazer, algumas vezes com um guia atlante e outras sozinhos, depois que nossos hóspedes compreenderam que não necessitávamos de constantes cuidados e vigilância. Passávamos certa vez por um trecho da planície que nos era muito familiar quando verificamos, cheios de surpresa, que uma grande faixa de areia amarela, de cerca de meia jeira de superfície, fora depositada ou descoberta, posteriormente à nossa última visita. Contemplávamos aquele espetáculo com alguma surpresa, perguntando-nos que corrente submarina ou que movimento sísmico havia causado o seu aparecimento, quando vimos cheios de espanto toda aquela faixa se elevar, e passar nadando, com lentas ondulações, bem acima de nossas cabeças. Era tão grande aquele palio movediço que levou tempo relativamente considerável — um minuto ou dois — a passar acima de nós. Era um gigantesco peixe chato, não muito diferente, pelo que o professor pôde observar, de um de nossos pequenos rodovalhos, alcançando estas extraordinárias dimensões devido talvez à abundante nutrição que encontrava nos depósitos batibianos. Vimos seu vulto enorme, branco e dourado, desaparecer tremeluzindo e ondulando na escuridão das camadas mais elevadas das águas e nunca mais o avistamos.

Havia um outro fenômeno das grandes profundidades pelo qual não esperávamos. Eram os furacões que freqüentemente ocorrem aí. Parecem ser causados pela passagem periódica de correntes submarinas, difíceis de prever e terríveis em seus efeitos, causando em sua passagem tanta confusão e transtorno como as ventanias mais violentas da terra. Sem isto gerar-se-iam sem dúvida putrefações resultantes da estagnação, havendo portanto aqui, como em tudo na natureza, um excelente fim em vista; o espetáculo contudo não deixava por isso de ser alarmante.

Na primeira ocasião em que me vi envolvido em tal ciclone de água havia saído com aquela muito cara pessoa a que já aludi, Mona, a filha de Manda. Havia mais ou menos a uma milha de distância da colônia uma pitoresca elevação recoberta de algas das mais variadas cores. Era este o jardim dileto de Mona, que o tratava com especial carinho. Nele se emaranhavam lindas serpulárias cor-de-rosa, ofiúrides de cor púrpura e holotúrias rubras. Naquele dia ela me levara para vê-lo e foi enquanto estávamos lá que a borrasca começou. Tão forte era a corrente que subitamente desabou sobre nós que só nos amparando mutuamente e nos abrigando atrás das rochas é que conseguimos impedir que a água nos arrastasse. Notei que esta violenta torrente de água era quente, de um calor apenas suportável, mesmo, o que pode significar que haja uma origem vulcânica nestes fenômenos e que sejam o resultado de algum distúrbio sísmico submarino em regiões distantes do leito do oceano. A lama orgânica da grande planície foi elevada em turbilhões pela força da corrente e a claridade diminuída devido à quantidade de lodo em suspensão na água que nos cercava. Encontrar o caminho para voltarmos era completamente impossível, pois estávamos totalmente desorientados e de qualquer modo mal nos podíamos mover contra a força das águas. Para complicar ainda mais nossa situação, um peso crescente sobre o peito e certa dificuldade em respirar revelou-me que nossa provisão de oxigênio começava a esgotar-se.

É nestas ocasiões, quando nos achamos na imediata presença da morte, que as grandes paixões surgem à tona, submergindo todos os sentimentos de menor intensidade. Só naquele momento é que fiquei sabendo que amava minha graciosa companheira, que a amava com todo o meu coração, amava-a com um amor que se enraizara tão profundamente em minha alma que fazia parte de meu próprio ser. Que estranho sentimento é um amor como esse! Como é difícil analisá-lo! Não era pelo seu rosto nem pelo seu corpo adorável que a amava. Não era por sua voz, se bem que fosse a mais musical que ouvira até então, nem por estimar seus dotes de espírito, pois só podia ler seus pensamentos na expressão mutável de seu rosto. Não, o que nos unia para sempre era alguma coisa que via através de seus olhos sonhadores, um elo invisível bem no íntimo de nossas almas. Segurei sua mão na minha, lendo em seu rosto que todos os meus pensamentos e emoções chegavam até seu espírito receptivo. A morte ao meu lado não a atemorizava e quanto a mim esse pensamento me fazia o coração palpitar.