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Mas isso não deveria suceder. Pensar-se-ia que nossos invólucros de vidro impediriam a penetração de todo o som do exterior, mas a verdade é que certas vibrações particulares atravessavam-nos facilmente, ou pelo seu choque contra os mesmos despertavam vibrações análogas no seu interior. Ouvi um retumbo grave e vibrante como o de um gongo distante. Não sabia o que poderia significar, mas minha companheira pareceu compreender. Segurando sempre a minha mão ela se levantou de nosso abrigo, e, após ficar alguns momentos à escuta, curvou-se e pôs-se a caminhar contra a torrente. Era uma luta contra a morte aquela, pois a cada momento a opressão que sentia no peito tornava-se mais insuportável. Vi seu rosto amado olhando ansiosamente para o meu e cambaleando pus-me a caminho na direção que ela me indicava. Sua aparência e seus movimentos mostravam-me que sua reserva de oxigênio estava menos rarefeita que a minha. Continuei caminhando enquando a Natureza o permitiu, mas subitamente tudo pareceu girar ao meu redor. Estendi os braços e caí sem sentidos sobre o fundo fofo do oceano.

Quando voltei a mim encontrava-me no meu próprio leito, no interior do Palácio Atlante. O velho sacerdote vestido de amarelo se achava ao meu lado, com um frasco de um estimulante qualquer na mão. Maracot e Scanlan estavam curvados sobre mim com uma expressão inquieta nos rostos e Mona se achava ajoelhada aos pés da cama, com as feições exprimindo terna ansiedade. Parece que a corajosa moça se tinha dirigido o mais depressa que pôde para a porta do refúgio, na qual era costume nessas ocasiões bater um grande gongo para orientar algum companheiro que se houvesse extraviado. Lá, ela explicara minha situação, tendo levado até onde me achava a expedição de salvação, da qual faziam parte meus dois companheiros, que me haviam trazido carregado. Tudo o que eu possa fazer nesta vida será na realidade Mona que o fará, pois minha vida é uma dádiva sua.

Agora que por um milagre ela veio comigo para o mundo de cima, o mundo humano que o céu recobre, é estranho refletir sobre o fato de que meu amor era tal que eu estava disposto com todas as veras da minha alma a permanecer para sempre nas profundezas oceânicas, pelo menos enquanto ela me amasse. Durante muito tempo não pude compreender aquele vínculo fortíssimo que nos unia e que eu podia ver que era sentido tão fortemente por ela quanto por mim. Foi Manda, seu pai quem me deu a sua explicação, que era tão inesperada quanto satisfatória.

Ao perceber nosso caso de amor, ele se limitara a sorrir com o ar indulgente e benévolo de alguém que vê realizar-se aquilo que já previra. Mas um dia ele me chamou e levou-me ao seu próprio quarto, onde colocara aquela tela prateada que refletia o pensamento. Nunca, enquanto estiver vivo, poderei esquecer o que ele nos mostrou a mim e a ela. Sentados lado a lado, com as mãos unidas, assistíamos arrebatados àquele suceder-se de quadros que passava diante de nossos olhos, formados e projetados graças àquela memória racial do passado que os atlantes possuem.

Apareceu uma península eriçada de rochedos, avançando por um lindo oceano azul. É bem possível que eu não tenha dito antes que nestes refletores do pensamento a cor é reproduzida tão bem quanto a forma. Neste promontório havia uma grande casa de arquitetura extravagante, vasta e bela, com seu teto vermelho e suas paredes brancas. Um pequeno bosque de palmeiras a cercava. Neste bosque parecia haver um acampamento, pois entrevíamos por entre as árvores o branco do pano das tendas e aqui e além o brilho das armas de alguma sentinela montando guarda. Fora deste bosque caminhava um homem de meia idade, vestido com uma armadura de malhas e com um pequeno e leve escudo redondo no braço. Carregava alguma coisa na outra mão, mas eu não podia distinguir se seria uma espada ou um dardo. Certa ocasião voltou o rosto para nós e vi imediatamente que era da mesma raça que os atlantes em cujo meio eu estava. Podia realmente ter sido o irmão gêmeo de Manda, tanto se parecia com ele, mas suas feições eram duras e ameaçadoras — a de um homem brutal, mas que é brutal não por ignorância, mas por sua própria natureza. A crueldade unida à inteligência constituem a mais perigosa de todas as combinações. Nessa testa alta e nesse rosto sardônico e de barba longa sentia-se a verdadeira essência do mal. Se esta era realmente alguma encarnação anterior de Manda — e este por seus gestos, parecia querer significar-nos que sim — então ele se elevara muito em alma, se não em espírito, desde essa época.

Ao se aproximar da casa vimos uma jovem sair ao seu encontro. Estava vestida à moda das gregas antigas, com uma longa túnica flutuante, a vestimenta mais simples e todavia a mais bela e majestosa que a mulher já usou. Suas maneiras ao se aproximar dele eram cheias de submissão e reverência — as maneiras de uma filha obediente dirigindo-se a seu pai. Ele contudo repeliu-a brutalmente, levantando a mão para bater-lhe. Ela recuou, mas ao fazê-lo o sol caiu em cheio sobre seu rosto belo e banhado de lágrimas e eu vi então que era a minha Mona.

A tela prateada embaciou-se e dali a um instante aparecia outra cena. Era uma enseada cercada de rochas que eu sentia pertencer àquela mesma península que já vira. Ao fundo via-se um bote de estranho formato, de extremos elevados e pontudos. Era noite, mas a lua rasgava uma esteira de prata nas águas. As estrelas familiares, as mesmas para os atlantes que para nós, luziam no céu. Lenta e cautamente o.bote se aproximava. Conduziam-no dois remadores e à proa ia um homem envolto num manto negro. Já quase na praia ele levantou a cabeça perscrutando ansiosamente os arredores. Vi seu rosto pálido e grave à luz clara do luar. Não foi necessária a nervosa pressão dos dedos de Mona sobre minha mão nem a exclamação de Manda para explicar-me aquele estranho estremeção que me percorreu o corpo ao vê-lo. Aquele homem era eu próprio.

Sim, eu, Cirus Headlei, atualmente de Nova York e Oxford; eu, o mais acabado produto da cultura moderna, havia outrora vivido no seio desta antiga e poderosa civilização. Compreendia agora porque numerosos dos símbolos e hieróglifos que vira ao meu redor me haviam dado uma vaga impressão de familiaridade. Numerosas vezes me sentira como um homem que se esforça por avivar reminiscências confusas, sentindo que está às portas de uma grande descoberta, que, embora suspeite estar próxima, sempre lhe escapa. Agora também compreendia aquele profundo abalo que sentira quando meus olhos haviam encontrado os de Mona. Viera das profundezas do meu subconsciente, onde ainda dormiam as recordações de doze mil anos.

O bote acabava de tocar a praia e das moitas acima surgira um vulto alvo. Meus braços se estenderam para recebê-la. Após um rápido abraço levara-a para o bote. Mas repentinamente houve um alarma. Com gestos frenéticos eu ordenava aos remadores que afastassem a embarcação. Mas era tarde. Homens se precipitaram de todas as moitas em volta. Mãos vigorosas empolgaram o barco. Em vão tentava repeli-los. Uma acha luziu no ar e abateu-se sobre minha cabeça. Caí de bruços, morto, sobre ela, banhando seu vestido branco com o meu sangue. Vi-a gritando de desespero, de olhar esgazeado e rosto convulso e seu pai arrancando-a pelos longos cabelos negros de debaixo do meu corpo. E tudo se tornou confuso.

Novamente se animou a tela prateada. Era o interior da casa de refúgio que fora construída pelo previdente atlante como um abrigo para o dia da condenação — a mesma em que nos encontrávamos agora. Vi seus moradores reunidos cheios de terror no momento da catástrofe. Avistei aí minha Mona novamente e também seu pai, que havia aprendido caminhos melhores e mais sábios de modo a ser agora incluído entre aqueles que deveriam ser salvos. Vimos o grande salão adernando para um e outro lado como um navio numa tempestade e os refugiados, cheios de terror, agarrando-se aos pilares ou caindo no chão. Em seguida vimos todo o edifício afundar, descendo através das águas. Novamente tudo desapareceu e Manda voltou-se sorrindo para mostrar que estava terminada a exibição.