Sim, todos nós, Manda, Mona e eu, já havíamos vivido antes e talvez viveremos ainda uma longa cadeia de vidas. Eu havia morrido no mundo que ficava acima das águas e por isso minhas reencarnações se haviam realizado aí. Manda e Mona haviam morrido sob as águas e assim fora aí que se desenrolara seu destino cósmico. Havíamos levantado por alguns momentos um ângulo do grande véu negro da Natureza e tido um vislumbre passageiro da verdade entre os mistérios que nos cercam. Cada vida é apenas um capítulo numa história que Deus arquitetou. Não podereis julgar de sua sabedoria ou de sua justiça senão quando olhardes para trás nalgum dia supremo, alcantilado nalgum pináculo de sabedoria, e virdes finalmente de um modo claro as resultantes da ação complexa das causas e efeitos através do Tempo.
Talvez tenha sido esta minha recente e deliciosa amizade que nos tenha salvo a todos, quando pouco mais tarde surgiu entre nós e a comunidade com que habitávamos a única questão séria que tivemos. Poderíamos ter-nos saído mal se um assunto de muito maior monta não tivesse vindo absorver a atenção de todos e elevar-nos enormemente em seu conceito. Foi mais ou menos assim:
Uma manhã — se tal termo se pode aplicar quando só distinguíamos as diferentes partes do dia pelas ocupações em que as empregávamos — o professor e eu achávamo-nos sentados em nosso grande quarto comum. Ele transformara um recanto do mesmo em laboratório e achava-se absorvido na dissecação de um gastrostomus que havia pescado com sua rede no dia anterior. Sobre sua mesa achava-se espalhado grande número de anfípodes e copépodes, juntamente com espécimes dos gêneros Valella, Ianthina e Physalia e uma centena de outros bichos, cujo cheiro estava longe de ser tão atraente quanto seu aspecto. Achava-me sentado perto dele, a estudar uma gramática atlante, pois nossos amigos possuíam livros em abundância curiosamente escritos da direita para a esquerda sobre um material que supus a princípio fosse pergaminho mas que vi mais tarde ser fabricado de bexigas natatórias de peixes, comprimidas e tornadas inalteráveis. Tinha resolvido apoderar-me da chave que nos proporcionaria todos os conhecimentos neles contidos e por isso estava dedicando grande parte do meu tempo ao estudo do alfabeto e elementos de sua linguagem.
Subitamente, porém, nossas tranqüilas ocupações foram rudemente interrompidas por uma extravagante procissão que irrompeu pelo nosso quarto. Primeiro apareceu Bill Scanlan muito vermelho e agitado, a brandir um dos braços, enquanto com o outro — vimos cheios de espanto — segurava uma criança rechonchuda e chorosa. Atrás dele vinha Berbrix, o mecânico atlante que ajudara Scanlan a construir o receptor de rádio. Era um homem robusto e jovial nas circunstâncias normais, mas agora seu rosto grande e gordo se achava transtornado pela aflição. Seguindo-os vinha uma mulher cujos cabelos louros e olhos azuis mostravam que não era atlante, mas pertencia à raça subordinada que supúnhamos descendesse dos antigos gregos.
— Olhe, patrão, disse o agitado Scanlan, meu amigo Berbrix é uma boa pessoa e ele com esta mulher com quem casou estão passando um mau bocado. Parece que a raça dela aqui é como a dos negros no Sul dos Estados Unidos e ele precisou falar muito para convencê-la a casar-se com ele; mas com isso acho que não temos nada que ver.
— É lógico que não, repliquei. Que bicho te mordeu, Scanlan?
— Foi o seguinte, patrão. Desse casamento nasceu uma criança, mas parece que essa gente não gosta de um produto dessa espécie, e os sacerdotes querem por isso sacrificá-la àquela imagem lá debaixo. Aquele chefe espichela já a ia levando quando Berbrix a arrancou das suas mãos e eu o mandei ao chão com um soco no ouvido. Agora todo o bando está atrás de nós e…
Scanlan não prosseguiu em sua narração, pois repentinamente ouvimos alarido e ruído de pés no corredor, nossa porta foi escancarada e vários dos servidores do templo, vestidos de amarelo, precipitaram-se para o interior do quarto. Atrás deles, feroz e austero, vinha o portentoso sumo-sacerdote de nariz adunco. Fez um sinal com a mão e seus servos precipitaram-se para agarrar a criança. Mas pararam ao ver Scanlan atirá-la entre os espécimes de animais marinhos da mesa que ficava atrás dele e pegar num bastão com que enfrentou os atacantes. Eles haviam desembainhado suas facas, por isso eu também corri com um bastão em auxílio de Scanlan, enquanto Berbrix fazia o mesmo. Nosso aspecto era tão ameaçador que os servos do templo recuaram e houve um momento de tréguas.
— Sr. Headlei, exclamou Scanlan o senhor que fala um pouco da língua deles queira dizer-lhes que não arranjarão nada aqui. Faça o favor de lhes dizer que hoje não se entregam crianças. Diga-lhes ainda que se não saírem já, haverá um tempo quente como nunca viram. Muito bem! Era isso o que você estava procurando! Agora deve estar satisfeito!
Estas últimas palavras de Scanlan eram motivadas pelo fato de o Dr. Maracot haver inesperadamente enterrado seu bisturi de dissecações no braço de um dos servidores do templo, que havia dado a volta por trás de nós e levantara sua faca para ferir Scanlan. O homem deu um grito e cambaleou de medo e dor sem saber para onde fugir, e seus companheiros se prepararam para uma investida, incitados pelo velho sacerdote. Só Deus sabe o que teria sucedido se Manda e Mona não tivessem entrado naquele momento. Aquele olhou cheio de espanto a cena que se deparava a seus olhos e fez ao sumo-sacerdote algumas rápidas perguntas. Mona se dirigiu para o meu lado e com uma feliz inspiração eu tomei a criança e coloquei-a em seus braços, onde ela se acomodou, serenando seus vagidos.
A fronte de Manda se nublara e via-se que ele se achava profundamente embaraçado para resolver aquele caso. Mandou o sacerdote com seus satélites de volta para o templo e entrou em uma longa explicação da qual apenas parte pude compreender e transmitir aos meus companheiros.
— Ele diz que precisam entregar a criança, disse eu a Scanlan.
— Entregar a criança! Não senhor. Isso é que não!
— Esta senhora se encarregará da mãe e do filho.
— Isso já é outro caso. Se a Senhorita Mona toma conta deles ficarei satisfeito. Mas se esse sacerdote cara de coruja…
— Não, ele não terá interferência nenhuma. A questão será entregue ao Conselho. É um caso muito sério, pois, pelo que Manda me disse, compreendi que o sacerdote está nos seus direitos e que é um velho costume estabelecido na nação. Diz ele que não poderiam depois distinguir uma raça da outra se houvesse entre ambas toda uma série de intermediários. Se nascem crianças nessas condições elas devem morrer. É essa a lei.
— Sim, mas esta criança não morrerá.
— Espero que não. Ele disse que faria tudo o que pudesse junto ao Conselho. Mas até que este se reúna decorrerá uma ou duas semanas. Desse modo ela está por enquanto em segurança e quem sabe o que poderá suceder neste intervalo de tempo!
Sim, quem poderia prever o que sucederia? Quem poderia sequer sonhá-lo? E é disso que trataremos no próximo capítulo das nossas aventuras.
CAPÍTULO VII
Já disse que, a pequena distância da morada subterrânea dos atlantes, construída propositalmente para resistir ao cataclismo que destruíra sua terra natal, encontravam-se as ruínas da grande cidade que seus antepassados haviam habitado. Descrevi também a visita que fizemos a esse lugar com as campanas de vidrina carregadas de oxigênio sobre as cabeças, e tentei reproduzir a profunda emoção que experimentamos ao percorrê-las. Não há palavras que possam exprimir a tremenda impressão produzida em nossos espíritos por aquelas colossais ruínas, com seus pilares esculpidos e gigantescos edifícios, perfilados silenciosamente à luz fosforescente das profundezas batibianas, sem nenhum movimento a animá-los a não ser o lento balouço das algas gigantes às correntes marinhas profundas ou os vultos rápidos de grandes peixes que desfechavam através das portas escancaradas ou dos salões desmantelados. Era um de nossos passeios favoritos, e guiados pelo nosso amigo Manda passamos muitas horas agradáveis a examinar sua estranha arquitetura e todos os outros restos daquela civilização desaparecida, que, a se julgar pelos vestígios materiais que deixara, parecia haver-se adiantado muito mais que a nossa.