Falei de vestígios materiais, mas logo tivemos a prova de que em cultura espiritual um vasto abismo os separava de nós. A lição que podemos tirar de sua ascensão e sua queda é que o maior mal que pode sobrevir a uma nação é a inteligência dominar o sentimento. Foi isto que destruiu esta velha civilização e que ainda poderá ser a ruína da nossa. Havíamos observado que numa parte da antiga cidade havia um grande edifício que se deveria encontrar situado sobre uma colina, pois ainda se achava consideràvelmente acima do nível dos outros. Uma longa série de grandes degraus de mármore negro conduzia até ele e o mesmo material se via utilizado na maior parte do edifício, sendo porém que se achava agora quase totalmente mascarado por uma horrível profusão de fungos amarelos, que pendiam como postas pútridas de carne de todas as cornijas e saliências. Acima da porta principal, esculpida também em mármore negro, via-se uma medonha cabeça donde se irradiavam serpentes, como a cabeça de Medusa, e mesma figura se reproduzia aqui e além sobre as paredes. Várias vezes havíamos querido explorar este sinistro edifício, mas em todas elas Manda mostrara a mais viva agitação e por gestos desesperados implorara que nos afastássemos. Era claro para nós que enquanto ele estivesse em nossa companhia nunca permitiria que o fizéssemos, mas uma grande curiosidade nos impelia a desvendar o segredo daquele palácio misterioso. Uma manhã eu e Bill Scanlan tivemos uma conversa sobre o assunto.
— Olhe Bo, disse-me ele, há aí alguma coisa que Manda não quer que vejamos, mas quanto mais ele no-la oculta mais vontade tenho de saber o que é. Acho que nós dois não precisamos mais de guias. Creio que poderemos vestir nossas campanas de vidro e sair como qualquer outro cidadão. Vamos até lá explorar a casa.
— Tem razão, disse eu. Vê nisso algum inconveniente, doutor? perguntei a Maracot, que havia entrado no quarto. Quererá vir conosco também para destrinçarmos o mistério do Palácio do Mármore Negro?
— É muito possível que seja também o Palácio da Magia Negra, disse ele. Já ouviu falar no Senhor do Torvo Semblante?
Confessei que não. Não sei se já terei dito antes que o professor era uma autoridade mundial em assuntos de Religião Comparada e antigas crenças primitivas. Mesmo a longínqua Atlântida não escapara totalmente aos seus estudos.
— Nossos conhecimentos a este respeito nos vêm principalmente por intermédio do Egito, disse ele. Aquilo que os sacerdotes do Templo de Sais disseram a Sólon é que constitui o núcleo sólido ao redor do qual tudo o mais, parte realidade e parte ficção, se veio condensar.
— E que foi que esses sacerdotes disseram de interessante? perguntou Scanlan.
— Muitas coisas. Entre outras referiram-se à lenda do Senhor do Torvo Semblante. Não me posso impedir de pensar que possa ter sido o morador do Palácio do Mármore Negro. Alguns dizem que havia vários Senhores do Torvo Semblante mas Sólon apenas se refere a um único.
— E que espécie de sujeito era esse? perguntou Scanlan.
— Pelo que dizem deveria ser um ente sobre-humano, tanto pelos poderes de que dispunha como por sua perversidade. Diziam ter sido mesmo por sua causa e por causa da corrupção de costumes que ele havia provocado entre o povo que todo o país fora destruído.
— Como Sodoma e Gomorra.
— Exatamente. Parecia existir um ponto que, atingido, tornaria a situação incomportável. A paciência da Natureza, como que se esgotaria, apresentando-se-lhe como único recurso a destruição de tudo para recomeçar de novo. Esta criatura que mal se pode chamar de humana dedicara-se a artes diabólicas e adquirira poderes mágicos do maior alcance, que utilizava para praticar o mal. É essa a lenda do Senhor do Torvo Semblante. Isso explicaria porque essa casa é ainda um objeto de horror para este pobre povo e porque nos impedem de aproximarmo-nos dela.
— O que me torna ainda mais ansioso por fazê-lo, exclamei.
— E a mim também, Bo, acrescentou Bill.
— Confesso que também me interessaria examiná-la, disse o professor. Creio que nossos bons hóspedes não se zangarão se fizermos uma pequena expedição por nossa Conta, desde que sua superstição lhes torna difícil acompanhar-nos. Aproveitaremos a primeira oportunidade para isso.
Esta oportunidade demorou um pouco a apresentar-se, pois nossa pequena comunidade era regida por uma organização tão rígida e perfeita que poucas ocasiões se davam para o exercício da iniciativa individual. Aconteceu todavia que uma manhã houve uma festa religiosa que os fez reunirem-se e absorveu toda a sua atenção. A oportunidade era boa demais para que a perdêssemos e tendo por isso assegurado aos dois porteiros encarregados de manobrar as grandes bombas da câmara de entrada que tudo estava em ordem, encontrávamo-nos dali a pouco sobre o leito do oceano, a caminho da velha cidade. Caminha-se com dificuldade através do meio denso que é a água salgada, e mesmo uma curta jornada é cansativa, mas no fim de uma hora já nos achávamos em frente do vasto edifício negro que excitara nossa curiosidade. Sem nenhum guia amigo para nos deter, nem pressentimento de perigo, subimos a escadaria de mármore e passamos por entre as ombreiras esculpidas daquele palácio do mal.
Estava muito melhor conservado que os outros edifícios da velha cidade — tão conservado mesmo que seu arcabouço de pedra estava ainda perfeito e apenas o mobiliário e ornamentos é que haviam há muito desaparecido. A Natureza, porém, trouxera outros adornos em substituição, e dos mais horríveis. Era uma habitação escura e sombria, mas mesmo naquela semi-obscuridade entreviam-se as formas repulsivas de pólipos monstruosos e peixes extravagantes e grotescos, como visões de um pesadelo. Lembro-me em especial de uma enorme espécie de lesma do mar de cor púrpura, que se arrastava em grande número por toda parte e de grandes e negros peixes chatos que jaziam como almofadas sobre o chão, com longos tentáculos ondulantes de extremidades rubras movendo-se acima deles na água. Precisávamos avançar com cuidado, pois todo o edifício estava povoado com estes entes horrendos, que poderiam muito bem mostrar-se tão peçonhentos como pareciam.
Havia corredores ricamente ornamentados, com pequenos quartos ao lado e o centro do edifício era ocupado por um salão magnífico, que nos seus dias de grandeza deveria ter sido um dos mais admiráveis que a mão do homem já construiu. Aquela frouxa claridade não podíamos ver o teto nem as paredes em conjunto. Mas passeando por eles os túneis de luz de nossas lâmpadas, pudemos apreciar suas dimensões gigantescas e as maravilhosas decorações das paredes. Estas decorações consistiam em estátuas e ornamentos esculpidos com a perfeição mais acabada, mas horríveis e revoltantes em suas representações. Tudo o que o espírito humano mais depravado poderia conceber de crueldade sádica e luxúria bestial, estava representado naquelas paredes. Através das sombras entrevíamos ao nosso redor, para todos os lados, imagens monstruosas e repulsivas. Se jamais o demônio teve um templo erigido em sua honra, seria aquele. A figura do próprio demônio lá se achava representada. Numa extremidade do salão, sob um palio de um metal descorado que bem poderia ter sido ouro e colocada sobre um alto trono de mármore vermelho, achava-se sentada uma divindade temerosa, a mais perfeita personificação do mal, feroz, escarnecedora e implacável, modelada nas mesmas linhas que a de Baal que víramos na colônia dos atlantes, mas infinitamente mais pavorosa e repulsiva. Havia como que um fascínio na energia portentosa daquele semblante terrível. Achávamo-nos à sua frente com a luz de nossas lâmpadas projetadas sobre ela e a contemplá-la absortos, quando a mais espantosa e incrível das coisas veio quebrar o fio de nossas reflexões. De trás de nós veio o som de uma risada humana, estrepitosa e sardônica.