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Como já expliquei, nossas cabeças se achavam encerradas em campanas de vidro que não só impediam a entrada do som, como também a transmissão da voz de uma pessoa que a usasse. E entretanto aquele riso escarnecedor chegava claramente aos ouvidos de todos nós. Voltamo-nos todos instantaneamente e ficamos paralisados de espanto ante o espetáculo que se nos deparou.

Recostado contra um dos pilares do vasto salão encontrava-se um homem, com os braços cruzados sobre o peito e os olhos malévolos fixados ameaçadoramente sobre nós. Eu disse que era um homem, mas era diferente de todos os homens que já vira, e o fato de poder respirar e falar em condições em que nenhum homem poderia fazê-lo e de poder transmitir sua voz quando nenhum homem o conseguiria, mostrava-nos que ele tinha em si algo que o tornava muito diferente de nós. Exteriormente era uma figura majestosa, tendo no mínimo sete pés de altura, de linhas atléticas, o que se via melhor por usar ele uma vestimenta que lhe moldava perfeitamente o corpo e que parecia feita de couro preto e luzidio. Seu rosto era o de uma estátua de bronze, uma estátua esculpida por mão de mestre a fim de representar toda a energia e ao mesmo tempo todo o mal que se poderiam imprimir numa fisionomia humana. Seu rosto não exprimia orgulho nem sensualismo, pois tais caracteres indicam fraquezas e não se divisava naquele o menor traço disso. Muito pelo contrário, exprimia uma energia sobre-humana com seus traços firmes, seu nariz de águia, suas sobrancelhas escuras e cerdosas e seus flamejantes olhos negros, que cintilavam e luziam como animados de um fogo interior. Eram estes olhos implacáveis e malignos e sua boca bela mas cruel com seus lábios finos e retos, que lhe davam aquela expressão sinistra no rosto. Sentia-se ao olhar para ele que apesar de sua aparência majestosa era impregnado de maldade até a medula dos ossos. Seu olhar era uma ameaça, seu sorriso um escárnio, sua risada um sarcasmo.

— Muito bem, senhores — disse ele em excelente inglês, numa voz que soava tão claramente como se nos achássemos na terra — já lhes sucedeu uma notável aventura em seu passado e bem lhes poderia acontecer uma outra ainda mais digna de nota no futuro, se bem que eu me possa dar ao agradável trabalho de cortar tudo pela raiz. Receio que esta nossa conversação tenha de possuir um caráter unilateral, mas como sou perfeitamente capaz de ler os seus pensamentos e sei de tudo a respeito de suas pessoas, não precisam temer nenhum mal-entendido. Têm ainda muitas, muitíssimas coisas a aprender.

Olhamos uns para os outros cheios do maior espanto. E o que era mais desagradável era estarmos impedidos de trocar idéias sobre as emoções que tudo isto despertava em nós. Ouvimos novamente sua risada áspera.

— Sim, é realmente bem desagradável. Mas poderão conversar quando voltarem, pois quero que voltem para levar uma mensagem minha. Se não fosse essa mensagem, creio bem que esta visita à minha casa seria o fim de todos. Mas antes de mais nada tenho qualquer coisa a dizer-lhes. Dirigir-me-ei à sua pessoa, Dr. Maracot, como sendo o mais velho e presumivelmente o mais sensato do grupo, se bem que não deva ser considerado muito sensato quem se atreve a fazer uma excursão como esta. Todos me ouvem perfeitamente, não é verdade? Muito bem, um simples movimento de cabeça é quanto me basta.

Em primeiro lugar, bem sabem quem sou. Sei que só me descobriram recentemente. Ninguém pode falar a meu respeito nem pensar em mim sem que eu o saiba imediatamente. Ninguém pode vir à minha antiga casa, meu sacrário mais íntimo, sem que eu me sinta no mesmo instante chamado. É por isso que aquela pobre gente a evita e queria que também a evitassem. Teriam realmente agido muito melhor se seguissem os seus conselhos. Os senhores me trouxeram aqui, e quando me chamam não me afasto assim tão prontamente.

Seu espírito, com o pequeno grão de ciência terrena que possui, atormenta-se inutilmente com os problemas que minha pessoa apresenta. Como posso viver aqui sem oxigênio? Eu não vivo aqui. Vivo no grande mundo dos homens sob a luz do sol. Só venho aqui quando sou chamado, como os senhores me chamaram. Sou uma criatura que apenas respira éter. Aqui existe tanto éter como no cume de uma montanha. Mesmo algumas pessoas da sua espécie, aliás, podem viver sem o ar. O cataléptico pode passar meses sem respirar. O mesmo sucede comigo, mas como vê, permaneço vivo e capaz de atividade.

Quer agora saber como me podem ouvir. Pois a verdadeira base da radiotelefonia não é a transformação de vibrações do éter em vibrações do ar? Assim também é que consigo fazer minhas palavras de articulação etérea atingir os seus ouvidos através do ar que enche esses seus grosseiros aparelhos.

O meu inglês? Espero realmente que o achem razoavelmente bom. Vivi algum tempo na terra — oh, bastante tempo! Quanto? Será este o décimo primeiro milênio ou o décimo segundo? O último, suponho. Tive tempo de aprender todas as línguas humanas. O meu inglês não é mais perfeito que o resto.

Terei resolvido algumas de suas dúvidas? Muito bem. Se eu não os posso ouvir, posso vê-los. Mas agora tenho alguma coisa mais séria a dizer.

Sou eu Baal-seepa. Sou eu o Senhor do Torvo Semblante. Sou eu aquele que penetrou tão fundo os mais íntimos segredos da Natureza que pôde desafiar a própria morte. Arranjei as coisas de modo tal a não poder morrer nem mesmo se o quisesse. Para que eu morra é necessário que surja uma vontade mais forte que a minha. Mortais, nunca peçam para ser libertados da morte. Esta pode parecer terrível, mas a vida eterna o é infinitamente mais. Ir de um para outro lado vendo passar a infinita procissão da humanidade! Sentarmo-nos a um lado da história e vê-la desenrolar-se, a caminhar sempre avante, deixando-nos para trás! É de se admirar que meu coração esteja cheio de rancor e amargura e que eu maldiga a todos e a tudo? Faço-lhes todo o mal que posso. Por que não?

Pergunta-se como o consigo. Disponho de poderes que não'são pequenos. Sei manobrar os espíritos dos homens. Sou o senhor das multidões. Onde quer que se tenha planejado o mal, lá estive eu. Encontrava-me com os hunos quando reduziram metade da Europa a ruínas. Encontrava-me com os sarracenos quando em nome da religião passavam a fio de espada os que discordavam de suas crenças. Achava-me presente aos massacres da noite de São Bartolomeu. Encontrava-me atrás do tráfico de escravos. Foi por insinuação minha que se queimaram dez mil velhas inofensivas que os tolos chamavam feiticeiras. Era eu o alto homem de tez escura que conduzia as multidões em Paris, quando o sangue inundava as ruas. Tempos inestimáveis aqueles! Mas houve ainda melhores ultimamente na Rússia. Foi donde eu vim agora. Havia-me quase esquecido desta colônia de ratos marinhos que, entocados na lama, conservam ainda algumas das artes e lendas daquela grande terra onde a vida floresceu com um viço nunca mais atingido. Foram os senhores que me fizeram lembrar deles, pois esta minha velha casa ainda está unida por vibrações pessoais, de que sua ciência nada sabe ainda, ao homem que a construiu e amou. Senti que estranhos haviam penetrado nela. Averigüei quem fossem e aqui estou. Desde que já «estou» aqui — e é a primeira vez em mil anos — isso me lembrou este povo. Acho que já viveram bastante. Já é tempo de se irem. Eles devem sua vida ao poder de um ente que me desafiou durante toda a sua existência e que edificou um prédio para refúgio contra o cataclismo que destruiu a tudo, menos a seu povo e a mim. Sua sabedoria os salvou e meu poderio, salvou-me. Mas agora meu poderio esmagará aqueles que ele salvou e a história ficará completa.