Mas subitamente o grande sino recomeçou a repicar. Suas badaladas retumbantes agitavam violentamente os nervos. Pus-me de pé num salto e Scanlan sentou-se no leito. Não era um apelo comum que ressoava através do velho palácio. Aquele repique agitado, tumultuoso e irregular, era um grito de alarma. Todos deveriam vir e imediatamente. Era ameaçador e insistente. «Venham! Venham imediatamente! Deixem tudo e venham!» bradava o sino.
— Olhe, Bo, acho que nos devemos reunir a eles, disse Scanlan. Decerto estão se preparando para enfrentá-lo agora.
— Mas que poderemos fazer?
— Talvez só a nossa presença já lhes dê um pouco mais de ânimo. De qualquer modo, eles não devem pensar que somos desertores. Onde está o doutor?
— Foi ao escritório. Mas tem razão, Scanlan. Devemos ir ter com os outros para mostrar-lhes que estamos prontos a partilhar o seu destino.
— Essa pobre gente parece ter confiança em nós. Pode ser que sua sabedoria seja maior do que a nossa, mas nós parecemos ter mais sangue-frio. Penso que eles se limitaram a conservar o que lhes foi dado, ao passo que nós tivemos que descobrir as coisas por nós mesmos. Se o dilúvio tem de vir mesmo, que venha.
Mas ao nos aproximarmos da porta deparamos com um espetáculo dos mais inesperados. O Dr. Maracot se achava à nossa frente. Mas seria aquele realmente o Dr. Maracot que conhecíamos — este homem senhor de si mesmo, em que a energia e a intrepidez se refletiam em cada traço de suas feições imperiosas? O sábio pacato desaparecera para dar lugar a um super-homem, um grande chefe, uma alma dominadora capaz de flectir o gênero humano aos seus desejos.
— Sim, amigos, pode ser que necessitem de nós. É possível que tudo possa ainda ser remediado. Mas venham imediatamente antes que seja tarde. Explicarei tudo depois — se é que possa haver algum depois para nós. Sim, sim, já estamos indo.
As últimas palavras eram ditas, ao mesmo tempo que acompanhadas por gestos adequados a alguns aterrorizados atlantes que haviam aparecido na porta e nos chamavam ansiosamente por gestos. Várias vezes, como dissera Scanlan, nos havíamos mostrado mais enérgicos e resolutos do que este povo prisioneiro das águas e agora, neste momento de supremo perigo, eles pareciam apegar-se a nós. Pude ouvir um abafado murmúrio de alívio e satisfação ao penetrarmos no salão e tomarmos os lugares reservados para nós na fileira da frente.
Já era tempo de chegarmos, se podíamos realmente levar-lhes algum socorro. O terrível personagem já se achava sobre o tablado, encarando com um sorriso cruel o povo apavorado que se achava à sua frente. A comparação de Scanlan de um bando de coelhos diante de uma doninha voltou-me à memória ao olhá-los. Seguravam-se uns aos outros, cheios de terror, a fitar com os olhos dilatados a temerosa figura que torrejava à sua frente e a implacável face de granito que os contemplava. Nunca me poderei esquecer da impressão que me fizeram aquelas filas semicirculares de rostos convulsos e de olhares que se cravavam apavorados no tablado central. Parecia que ele já proferira a condenação e que toda aquela gente esperava sob a sombra da morte a sua execução. Manda, em atitude de abjeta submissão, suplicava em voz entrecortada compaixão pelo seu povo, mas era visível que as suas palavras apenas serviam para acrescer o prazer do monstro, que o encarava escarnecedoramente. Com algumas palavras ásperas ele o interrompeu levantando a mão direita para o ar, enquanto um alarido de desespero se elevava da assembléia.
E naquele momento, o Dr. Maracot pulou para o tablado. Causava espanto vê-lo. Parecia havê-lo transmudado um milagre. Tinha o porte e a desenvoltura de um jovem e no seu rosto havia uma expressão de domínio e energia como nunca vira em feições humanas. Vimo-lo dirigir-se para o Torvo gigante que o fitava surpreendido.
— Então, homem, que tens a dizer? perguntou ele.
— Tenho isto a dizer, disse Maracot. Chegou a tua hora. Já a ultrapassaste mesmo. Para baixo! Desce imediatamente para o Inferno que já te esperou tanto tempo. És um príncipe das trevas. Vai para onde elas estão.
Os olhos do demônio lançavam sombrios clarões ao responder:
— Quando chegar a minha hora, se esta chegar algum dia, não será dos lábios de um vil mortal que o saberei, disse ele. Que poderes tens para te ousares opor por um momento que seja a um ente que manobra os mais íntimos segredos da Natureza? Eu poderia aniquilar-te no lugar em que estás.
Maracot sustentou sem pestanejar aquele olhar terrível. Pareceu-me que era o do gigante que lhe fugia.
— Infeliz criatura, disse Maracot, sou eu que tenho a vontade e o poder para aniquilar-te onde estás. Já manchaste demasiado o mundo com a tua presença. Foste sempre um pântano pútrido a macular tudo que há de belo e de bom. O coração dos homens sentir-se-á aliviado quando te fores e o sol luzirá com mais brilho.
— Que queres dizer? Quem és? balbuciou o gigante.
— Tu falas de conhecimentos secretos. Deverei dizer-te o que se acha na base dessa sabedoria? É que o bem é sempre mais forte do que o mal da mesma plana. O anjo sempre vencerá o demônio. Encontro-me agora no mesmo nível em que tu tanto tempo estiveste e tenho poderes de conquistador. Eles me foram conferidos. Por isso ordeno-te novamente: Para baixo, já! Desce para o Inferno a que pertences! Para baixo, ordeno-te! Já!
E então ocorreu o milagre. Durante um minuto ou mais — como se poderia avaliar o tempo em tais momentos? — os dois entes, o mortal e o demônio, encararam um ao outro, rígidos como estátuas, olhos nos olhos, ambos com a mesma expressão de inflexível energia no rosto. E subitamente a gigantesca criatura recuou. Com o rosto convulso de furor elevou dois punhos fechados para o ar. «És tu, Warda, tu, maldito! Bem te reconheço! Maldito sejas, Warda! Mil vezes maldito!». Sua voz morreu aos poucos, seu vulto negro tornou-se de contornos indistintos, sua cabeça tombou para o peito, seus joelhos flectiram-se e lentamente caiu, mudando aos poucos de aspecto. A princípio era um abatido ser humano, que se tornou numa massa informe, desfazendo-se subitamente num montão semilíquido de uma matéria negra, pútrida e repulsiva, que manchava o tablado e empestava o ar. Ao mesmo tempo Scanlan e eu precipitamo-nos para a plataforma, pois o Dr. Maracot com um profundo gemido caíra desfalecido para a frente. «Vencemos! Vencemos!» balbuciou ele, e no instante seguinte perdia o conhecimento e tombava semimorto no chão.
Foi assim que a colônia atlante escapou ao perigo mais horrível que a poderia ameaçar e que um ente maléfico foi banido para sempre do mundo. Só dali a alguns dias pôde o Dr. Maracot contar-nos sua história e era ela de tal caráter que se não tivéssemos visto o seu desfecho tê-la-íamos na conta de delírio. Devo dizer que seu poder o havia abandonado depois de passada a ocasião que o solicitara, e que era agora o mesmo pacato homem de ciência que sempre conhecêramos.
— Acontecer isto a mim! exclamou ele. A mim, um materialista, um homem tão embebido de matéria que para mim o invisível não existia! Desmantelaram-se ao meu redor as teorias em que acreditei toda a minha vida.
— Entramos novamente numa outra escola, disse Scanlan. Se algum dia eu voltar para a minha pequena casa da cidade, terei bastante coisa que contar.
— Quanto menos falar tanto melhor para você, a não ser que queira ganhar a fama de ser o maior mentiroso de toda a América, redargüi. Será que eu ou você acreditaríamos nisso tudo se fosse alguém que nos viesse contar?
— É bem possível que não. Mas o senhor fez um trabalho bonito, doutor. Aquela alma negra ganhou o que merecia e o que é melhor é que não voltará mais. Para onde foi, isso é que não sei, mas de qualquer jeito para lá é que eu não quero ir.
— Vou contar-lhes exatamente o que aconteceu, disse o doutor. Lembram-se ainda de que eu os deixei e me retirei para o meu escritório. Tinha poucas esperanças no coração, mas em diversas ocasiões já li bastante coisa a respeito de magia negra e artes ocultas. Sabia já que a branca pode sempre dominar a negra quando pertençam ambas à mesma plana. Ele se achava num nível muito mais forte — não direi mais elevado — do que nós. Nisto é que consistia o mal.