— E qual é ele? perguntei.
O Dr. Maracot curvou-se para a frente com o rosto austero inflamado pelo entusiasmo de um fanático.
— Nossa meta, disse ele, é o fundo do Oceano Atlântico. Faço aqui uma pausa, pois espero que a notícia te tenha paralisado a respiração do mesmo modo que o fez com a minha. Se eu fosse um romancista, creio que encerraria aqui um capítulo, mas, como não passo de um simples cronista dos fatos, dir-te-ei que permaneci outra hora na cabina do velho Maracot, o qual me disse muitas coisas extraordinárias que tenho o tempo estritamente necessário para te contar antes que parta o último bote para a praia.
— Sim, disse ele, pode escrever agora, o que quiser, pois quando sua carta chegar à Inglaterra já teremos dado nosso mergulho.
Ao dizer isto riu-se, pois ele tem um senso de humor estranhamente apurado.
— Sim, meu caro senhor, mergulho é a palavra adequada nesta ocasião, um mergulho que se tornará histórico nos anais da Ciência. Permita-me que lhe diga em primeiro lugar que estou perfeitamente convicto de que a doutrina corrente da extrema pressão que existiria nas grandes profundidades oceânicas é inteiramente errônea. É perfeitamente claro que outros fatores devem existir que neutralizem esse efeito, se bem que eu ainda não esteja aparelhado para dizer quais sejam. É um problema a resolver. Diga-me agora uma coisa: qual seria a pressão que se poderia esperar sob uma milha de água?
Seus olhos luziam ao fitar-me, detrás de seus grandes óculos de tartaruga.
— Suponho que para mais de uma tonelada por polegada quadrada, respondi. Parece-me que isto já foi claramente demonstrado.
— O papel do pioneiro sempre foi desmentir coisas claramente demonstradas. Utilize seu cérebro, meu rapaz. O senhor passou o último mês a pescar algumas delicadas encarnações da vida das grandes profundidades, animais tão frágeis que dificilmente conseguia transportá-los da rede para o tanque sem os deformar com as mãos. Achou acaso que houvesse neles algum sinal da imensa pressão que deveriam suportar?
— A pressão estava neutralizada, respondi. Era a mesma tanto dentro como fora.
— Palavras — simples palavras! exclamou ele abanando impaciente a cabeça magra. O senhor pescou peixes esféricos como o «Gastrostomus globulus». Pois não seriam eles comprimidos e achatados se a pressão fosse como imagina?
— E a impressão pessoal relatada por numerosas pessoas?
— Certamente será verdadeira até certo ponto. Encontraram um aumento de pressão suficiente para impressionar o órgão mais sensível do corpo, que é o interior do ouvido. Mas na execução de meu plano não estaremos expostos a pressão alguma. Descer-nos-ão do navio dentro de um compartimento de aço, com janelas de cristal de cada lado para observação. Se a pressão não tiver força para arrebentar uma polegada e meia de aço não nos poderá fazer mal. Será uma reprodução em ponto maior da experiência dos irmãos Williamson em Nassau, que certamente já conhecerá. Se meus cálculos estiverem errados… ainda bem que ninguém depende de sua pessoa. Morreremos numa grande aventura. Se preferir, porém, não tomar parte neste empreendimento, poderei ir só.
Parecia-me a mais rematada das loucuras, mas bem sabes como é difícil recusar-se um convite para uma empresa arriscada. Fiz algumas perguntas para ganhar tempo.
— Até que profundidade pretende descer, Dr. Maracot?
Havia um mapa estendido na mesa e ele tocou com a extremidade de um compasso um ponto a sudoeste das Canárias.
— No ano passado fiz algumas sondagens nesta região, disse ele. Há aqui uma depressão de grande profundidade. Medimos vinte e cinco mil pés em alguns pontos. Fui eu o primeiro a assinalar este fato. Creio mesmo que a verá registrada nos mapas futuros com o nome de «Pélago de Maracot».
— Mas por Deus, doutor! exclamei, creio que não pretenderá descer num abismo como esse?
— Não, respondeu ele sorrindo. Nem nossa corrente nem os tubos de ar vão além de meia milha. Mas estava para lhe dizer que ao redor desta profunda depressão, que sem dúvida foi produzida por forças vulcânicas numa época remota, há uma espécie de planalto estreito que não está a mais de trezentas toesas abaixo da superfície.
— Trezentas toesas! Um terço de milha!
— Exatamente; apenas um terço de milha. Minha presente intenção é fazer com que nos desçam em nosso pequeno compartimento até esse ponto. Aí faremos as observações que pudermos. Estaremos em comunicação com o navio por meio de um telefone, de modo a podermos transmitir nossas ordens. Não haverá dificuldades nisso. Quando quisermos ser novamente içados, bastará dizê-lo.
— E o ar?
— Será renovado do interior do navio por meio de bombas.
— Mas deverá haver lá uma escuridão de breu.
— Isto, infelizmente, deve ser verdade. As experiências de Foi e Sarasin no Lago Genebra mostraram que mesmo os raios ultravioleta não chegam a tal profundidade. Mas que importa? Estaremos providos com a poderosa iluminação elétrica dos motores do navio, além de seis pilhas secas de Hellesens associadas de modo a dar uma tensão de doze volts. Isto e um refletor Lucas para sinais dos usados no exército bastará aos nossos fins. Vê alguma outra dificuldade?
— E se nossos condutos de ar se embaraçarem um no outro?
— Eles não se embaraçarão. Como reserva, além disso, temos ar comprimido em tubos que darão para vinte e quatro horas. Dá-se por satisfeito? Aceita o meu convite?
Não era uma resolução fácil de tomar. O cérebro trabalha rapidamente e a imaginação nos leva longe. Parecia-me ver já aquela caixa negra a descer através de profundezas primevas, sentir o ar denso e viciado e ver repentinamente as paredes deslocarem-se, encurvarem-se para dentro rompendo-se nos ângulos e a água jorrando de todas as junturas, de todos os lados. Seria uma morte lenta e horrível. Mas levantei o olhar e deparei com os olhos ansiosos daquele velho, cravados em mim com a exaltação de um mártir da ciência. Era um entusiasmo contagioso aquele, e, apesar de insano, era contudo nobre e abnegado. Seu ardor inflamou-me também quase a contragosto e pus-me de pé num salto com a mão estendida.
— Doutor, pode contar comigo até o fim.
— Já o sabia, disse ele. Não foi por causa de suas tinturas de ciência que o escolhi, meu jovem amigo, nem — acrescentou sorrindo — devido aos seus conhecimentos profundos dos caranguejos marinhos. Há outras qualidades que aqui podem ser mais imediatamente úteis, que são a lealdade e a coragem.
Assim, com este pequeno pedaço de açúcar, fui despedido com meu futuro empenhado e desmantelados todos os meus planos de vida. Mas fiquemos por aqui; o último bote já está de partida para a praia e estão pedindo a correspondência. Pode suceder que não ouças mais falar de mim, ou que recebas uma carta digna de ser lida. Se se der a primeira hipótese poderás tomar uma lousa flutuante e deixá-la cair no oceano, num lugar qualquer ao sul das Canárias, com a inscrição:
«Aqui ou alhures jaz tudo o que os peixes deixaram de meu amigo — Cirus J. Headlei».
O segundo documento em questão é o ininteligível radiograma que foi captado por vários navios, inclusive o paquete «Arroya» da Royal Mail. Foi recebido às três da madrugada do dia três de outubro de 1926, o que mostra ter sido expedido dois dias depois de haver o «Stratford» deixado a Grande Canária, como se vê pela carta anterior, e está em completo acordo com a indicação do veleiro norueguês que viu um vapor ir a pique durante um ciclone, duzentas milhas a sudoeste de Porta de Ia Luz. Dizia o seguinte:
«Graves avarias no navio. Receio nossa situação desesperadora. Já perdemos Maracot, Headlei, Scanlan. Situação incompreensível. Lenço de Headlei aparecido na extremidade da sonda de grandes profundidades. Deus nos ajude! — S.S. Stratford».