Já disse que a planície que se estendia ao redor de nós estava coberta com elevações que pareciam pequenas colinas. À frente de meu postigo se elevava uma particularmente grande, e eu a via de uma distância de trinta pés. Havia num lado da mesma uma pequena marca, que, examinando melhor, verifiquei com grande surpresa que se repetia numerosas vezes ao seu redor, perdendo-se nas curvas do seu contorno. Quando se está tão próximo da morte, é difícil nos impressionarmos com qualquer coisa que se refira a este mundo, mas perdi o fôlego um momento e meu coração paralisou-se ao notar que era um friso ornamental aquilo que eu estava olhando, e que, apagadas e gastas como estavam, fora sem dúvida a mão do homem que esculpira em alguma remota era aquelas figuras. Maracot e Scanlan precipitaram-se para o meu postigo e contemplaram cheios de espanto aqueles sinais da onipresente energia humana.
— Isso foi esculpido, sem dúvida nenhuma! exclamou Scanlan. Calculo que aquilo deveria ter sido o teto de um edifício. Por conseguinte, os outros também deverão corresponder a outros tantos edifícios. Creio, patrão, que fomos cair bem no meio de um burgo qualquer.
— É realmente uma antiga cidade, disse Maracot. A geologia nos ensina que os mares já foram continentes e os continentes mares, mas eu sempre repelira a idéia de que em tempos tão recentes, dentro da era quaternária, se tivesse dado tal cataclismo no Atlântico. A lenda egípcia que Platão nos transmitiu tem portanto uma base real. Estas formações vulcânicas confirmam a opinião de que esta submersão tenha sido devida a atividades sísmicas.
— Há uma certa regularidade na disposição destas cúpulas, observei. Estou inclinado a supor que não sejam casas separadas, mas sim diferentes cúpulas pertencentes a um único e imenso edifício.
— Creio que tem mesmo razão, disse Scanlan. Há quatro maiores nos cantos e outras menores enfileiradas para dentro. Deve ser um edifício único — e de que tamanho! Caberia todo o Merribank e mais alguma coisa dentro dele.
— Foi enterrado até a altura do teto pelo depósito constante de materiais orgânicos vindos das camadas superiores das águas, observou Maracot. Por outro lado, estes não se decompuseram. Temos nas grandes profundidades uma temperatura constante um pouco superior a 32° Fahrenheit que impediria esses processos destrutivos. Mesmo a dissociação desses depósitos que cobrem o leito do oceano e o tornam luminoso deve ser muito lenta. Mas que vejo! Estes sinais não são frisos, mas sim inscrições!
Não havia a menor dúvida de que tinha razão. O mesmo símbolo repetia-se várias vezes aqui e além. Aqueles sinais eram certamente letras de algum alfabeto arcaico.
— Já fiz alguns estudos sobre antigüidades fenícias e vejo nesses caracteres alguma coisa que me é familiar, disse nosso chefe. Pois é isso, meus amigos, pudemos ver uma cidade soterrada de eras remotas e carregaremos conosco para o túmulo a imagem sugestiva desse espetáculo. Não há nada mais que nos interesse ver. Nosso livro de surpresas está fechado. Também concordo agora que quanto mais depressa chegar o fim tanto melhor será.
Este agora não poderia estar longe. A atmosfera que respirávamos era densa e viciada. Tão carregada estava ela de anidrido carbônico que o oxigênio mal podia vencer a pressão e sair dos tubos. Ficando de pé nos bancos, ainda se conseguia respirar um ar mais puro, mas aquela camada mais carregada de produtos impróprios à respiração elevava-se cada vez mais. O Dr. Maracot cruzou os braços em ar de resignação e deixou cair a cabeça sobre o peito. Scanlan já fora vencido e debatia-se agora no assoalho. Eu próprio já sentia a cabeça girar-me e um intolerável peso sobre o peito. Fechei os olhos e a consciência já me abandonava. Pela última vez abri-os para lançar um último olhar àquele mundo que já abandonava, mas, ao fazê-lo, endireitei-me, cambaleando e desferi um brado rouco de espanto.
Um rosto humano nos olhava através do postigo!
Seria o delírio? Agarrei Maracot pelos ombros e sacudi-o violentamente. Este levantou a cabeça e olhou paralisado e mudo de espanto para esta aparição. Se ele a via tão bem como eu, não deveria ser apenas uma criação de meu cérebro debilitado. O rosto era longo e fino, de tez amorenada, com uma barba curta e afilada e dois olhos vivos que lançavam de um para outro lado olhares inquisidores, como procurando inteirar-se de todos os detalhes de nossa situação. Via-se impresso nas suas feições o maior espanto. Nossas luzes estavam todas acesas e deveria ter sido realmente um espetáculo bem estranho e impressionante o que se lhe deparava naquela pequena câmara funerária, em que um homem jazia sem sentidos e dois outros o fitavam com feições contorcidas de moribundos, cianosadas pela asfixia incipiente. Nós ambos tínhamos as mãos presas às nossas gargantas e nossos peitos arfantes mostravam bem a angústia que já começara a empolgá-los. O homem fez um gesto com a mão e afastou-se velozmente.
— Ele nos abandonou! exclamou Maracot.
— Ou foi em busca de auxílio. Vamos pôr Scanlan sobre o banco. Ele morrerá logo se o deixarmos no chão.
Arrastamos o mecânico para o banco e fizemos sua cabeça repousar sobre as almofadas. Seu rosto estava purpurado e murmurava em seu delírio frases ininteligíveis, mas o pulso era ainda perceptível.
— Ainda existe esperança para nós, exclamei em voz rouca.
— Mas é loucura! disse Maracot. Como poderia o homem viver no fundo do oceano? Como respiraria? Deve ter sido uma alucinação coletiva. Meu jovem amigo, estamos enlouquecendo.
Olhando para a paisagem sombria e deserta que nos cercava, iluminada por aquela luz frígida e espectral, senti que bem poderia ser que Maracot tivesse razão. Mas subitamente percebi movimento. Sombras se agitavam ao longe, através da água. Agora que se haviam aproximado mais, já podia enxergar vultos distintos caminhando numa massa movediça. Uma multidão de pessoas adiantava-se rapidamente em nossa direção pelo leito do oceano. Dali a um instante se achavam reunidos em frente do postigo e apontavam e gesticulavam em animado debate. Havia várias mulheres entre eles, mas na sua maior parte eram homens, um dos quais, uma imponente figura com uma grande cabeça e basta barba negra, via-se claramente ser uma espécie de chefe. Fez uma rápida inspeção da nossa caixa de aço, e, como parte da base da mesma fazia saliência para fora da elevação em que estávamos, ele pôde ver que havia um alçapão no fundo. Fez voltar um mensageiro correndo, enquanto nos fazia enérgicos e instantes sinais para que abríssemos a porta do lado de dentro.
— Por que não? perguntei. Tanto nos faz morrer afogados como de qualquer outro modo. Não suportarei isto mais tempo.
— Não poderemos ser afogados, disse Maracot. A água entrando por baixo não se poderá elevar acima do nível do ar comprimido. Dê um gole de brande a Scanlan. Ele deve fazer mais um esforço, nem que seja o último.
Despejei um pouco de bebida reconfortante pela boca do mecânico. Ele a engoliu e olhou ao seu redor com olhos surpreendidos. Sustentamo-lo de pé, segurando-o cada um de um lado. Ainda estava meio tonto, mas em poucas palavras expliquei-lhe a situação.
— Há a possibilidade de um envenenamento pelo ácido clorídrico se a água atingir as baterias, disse Maracot. Abra todos os tubos de ar, pois quanto maior a pressão que conseguirmos tanto menor será a quantidade de água que entrará. Agora ajude-me a mover a alavanca.
Pusemos sobre ela todo o nosso peso e levantamos o alçapão circular do fundo, se bem que isto me parecesse como um suicídio enquanto o fazia. A água verde, brilhando sob as nossas luzes, precipitou-se borbulhante pela abertura. Galgou rapidamente nossos pés, nossos joelhos, nossa cintura e aí parou. Mas a pressão do ar era intolerável. Nossos ouvidos zumbiam e sentíamos a cabeça girar. Não poderíamos viver muito tempo em tal atmosfera. Apenas agarrando-nos às saliências da parede é que conseguíamos deixar de tombar na água que se estendia abaixo de nós.