Viserion sentiu a sua inquietação. O dragão branco estava deitado, enrolado em volta de uma pereira, com a cabeça pousada na cauda. Quando Dany passou por ele, os olhos abriram-se, duas lagoas de ouro derretido. Os chifres também eram dourados, bem como as escamas que lhe cobriam o dorso, da cabeça à cauda.
— É um preguiçoso — disse-lhe, coçando-o sob o maxilar. As escamas do animal estavam quentes ao toque, como uma armadura deixada durante muito tempo ao sol. Os dragões são fogo feito carne. Lera aquilo num dos livros que Sor Jorah lhe dera como presente de casamento.
Devia estar caçando com os seus irmãos. você e Drogon andaram outra vez à luta? — Nos últimos tempos, os dragões estavam ficando violentos. Rhaegal tentara morder Irri, e Viserion incendiara o tokar de Reznak da última vez que o senescal a visitara. Deixei-os muito tempo sozinhos, mas onde arranjo tempo para eles?
A cauda de Viserion deu uma chicotada para o lado, batendo com tanta força no tronco da árvore que uma pera caiu e foi aterrar aos pés de Dany. As asas se desdobraram, e ele subiu ao parapeito, meio voando, meio saltando. Está crescendo, pensou ela quando o dragão se lançou para o céu. Estão os três crescendo. Em breve serão suficientemente grandes para suportar o meu peso. Nessa altura, voaria como Aegon, o Conquistador, voara, para cima e mais para cima, até Meereen ficar tão pequena que poderia tapá-la com o polegar.
Ficou observando Viserion subir em círculos cada vez mais largos até se perder de vista para lá das águas lamacentas do Skahazadhan. Só depois regressou para dentro da pirâmide, onde Irri e Jhiqui estavam à espera para lhe desfazer os nós do cabelo e a vestir como era próprio da Rainha de Meereen, com um tokar ghiscariano.
O traje era uma coisa desajeitada, um longo lençol solto e sem forma que tinha de ser enrolado em volta dos quadris, por baixo de um braço e por sobre um ombro, escalando e exibindo cuidadosamente as suas fímbrias pendentes. Enrolado com folga era provável que caísse; muito apertado emaranhava-se, fazia tropeçar e limitava os movimentos. Mesmo enrolado de forma apropriada, o tokar exigia que quem o usasse mantivesse no lugar com a mão esquerda. Caminhar com um tokar a obrigava a dar passos pequenos e afetados e a um equilíbrio refinado para não se pisar uma dessas pesadas fímbrias. Não era peça de vestuário destinada a qualquer homem que tivesse de trabalhar. O tokar era um traje de amo, um sinal de riqueza e poder.
Dany quisera banir o tokar quando capturara Meereen, mas os seus conselheiros tinham-na convencido do contrário.
— A Mãe de Dragões deve envergar o tokar ou ser odiada para sempre — avisara a Graça Verde, Galazza Galare. — Com as lãs de Westeros ou um vestido de renda de Myr, Vossa Radiância permanecerá para sempre uma estranha entre nós, uma estrangeira grotesca, uma conquistadora bárbara. A rainha de Meereen tem de ser uma senhora da Velha Ghis. O Ben Castanho Plumm, o capitão dos Segundos Filhos, colocara o problema de forma mais sucinta.
— Homem que queira ser rei dos coelhos é bom que use um par de orelhas de abano.
As orelhas de abano que escolheu naquele dia eram feitas de puro linho branco, com uma fímbria de borlas douradas. Com a ajuda de Jhiqui, enrolou corretamente o tokar em volta de si à terceira tentativa. Irri foi buscar lhe a coroa, esculpida na forma do dragão de três cabeças da sua Casa. O seu corpo serpentino era de ouro, as asas de prata, as três cabeças de marfim, ónix e jade. O pescoço e ombros de Dany ficariam rígidos e doloridos devido ao seu peso antes de o dia terminar. Uma coroa não deve ser fácil de trazer na cabeça. Um dos seus reais antepassados dissera aquilo uma vez. Algum Aegon, mas qual deles? Cinco Aegons tinham governado os Sete Reinos de Westeros. Teria havido um sexto, mas os cães do Usurpador tinham matado o filho do irmão de Dany quando não passava de um bebê de peito. Se ele tivesse sobrevivido, podia ter-me casado com ele. Aegon estaria mais perto da minha idade do que Viserys. Dany só fora concebida depois de Aegon e a irmã terem sido assassinados. O pai de ambos, o seu irmão Rhaegar, perecera ainda mais cedo, morto pelo Usurpador no Tridente. O irmão Viserys morrera aos gritos em Vaes Dothrak com uma coroa de ouro derretido na cabeça. Também me matarão se eu o permitir. As facas que mataram o meu Escudo Vigoroso destinavam-se a mim.
Não esquecera as crianças escravas que os Grandes Mestres tinham pregado ao longo da estrada de Yunkai. Tinham somado cento e sessenta e três, uma criança por cada milha, pregadas a marcos miliares com um braço esticado para lhe indicar o caminho. Depois de Meereen cair, Dany pregara um número semelhante de Grandes Mestres. Enxames de moscas tinham acompanhado as suas lentas mortes, e o fedor permanecera durante muito tempo na praça. Mas havia dias em que temia não ter ido suficientemente longe. Aqueles meereeneses eram um povo matreiro e teimoso que lhe resistia a cada passo. Tinham libertado os escravos, sim… só para voltarem a contrata-los como criados pagando-lhes salários tão baixos que a maioria mal podia dar-se ao luxo de comer. Os velhos ou novos demais para serem úteis tinham sido atirados para as ruas, com os enfermos e os aleijados. E, ainda por cima, os Grandes Mestres reuniam-se no topo das suas imponentes pirâmides para se queixarem de como a rainha dos dragões lhes enchera a nobre cidade com hordas de pedintes imundos, de ladrões e de prostitutas.
Para governar Meereen tenho de conquistar os meereeneses, por mais que os possa desprezar.
— Estou pronta — disse a Irri. Reznak e Skahaz aguardavam no topo das escadas de mármore.
— Grande rainha — declarou Reznak mo Reznak — está hoje tão radiosa que temo olha-la. — O senescal usava um tokar de seda castanha com fímbria dourada. Homem pequeno e úmido, cheirava como se tivesse se banhado em perfume e falava uma forma abastardada de alto valiriano, muito corrompida e temperada com um denso rosnado ghiscariano.
— É gentil por dize-lo — respondeu Dany, na mesma língua.
— Minha rainha — rosnou Skahaz mo Kandaq, o da cabeça rapada. O cabelo ghiscariano era denso e crespo; há muito que a moda dos homens das Cidades Escravagistas era penteá-lo em chifres, espigões e asas. Ao rapá-lo, Skahaz pusera a velha Meereen para trás das costas a fim de aceitar a nova, e a sua família fizera o mesmo, seguindo-lhe o exemplo. Outros se seguiram, embora Dany não soubesse dizer se teria sido por medo, moda ou ambição; chamavam-lhes tolarrapadas. Skahaz era o Tolarrapada… e o mais vil dos traidores para os Filhos da Harpia e os da sua laia. — Fomos informados sobre o eunuco.
— O nome dele era Escudo Vigoroso.
— Mais morrerão, a menos que os assassinos sejam punidos. — Mesmo com a cabeça raspada, Skahaz tinha uma cara odiosa; uma testa proeminente, olhos pequenos com pesadas olheiras por baixo, um grande nariz escurecido por pontos negros, pele oleosa que parecia mais amarela do que o âmbar habitual dos ghiscarianos. Era uma cara sem rodeios, brutal e zangada. Só podia rezar para que fosse também uma cara honesta.
— Como é que os puno se não sei quem eles são? — perguntou-lhe Dany. — Diga-me, ousado Skahaz.
— Não tens falta de inimigos, Vossa Graça. Vê as suas pirâmides do seu terraço. Zhak, Hazkar, Ghazeen, Merreq, Loraq, todas as velhas famílias escravagistas. Pahl. Acima de tudo, Pahl. Agora uma casa de mulheres. Velhas amargas com gosto por sangue. As mulheres não esquecem. As mulheres não perdoam.
Pois não, pensou Dany, e os cães do Usurpador ficarão sabendo disso quando eu voltar a Westeros. Era verdade que havia sangue entre ela e a casa de Pahl. Oznak zo Pahl foi abatido por Belwas, o Forte, em combate singular. O pai, comandante da patrulha de cidade de Meereen, morreu defendendo os portões quando a Pica de Joso os fizera em lascas. Três tios tinham estado entre os cento e sessenta e três da praça.