— Eu sei. — A rainha suspirou. — O que aconselha, sor?
— A batalha — disse Sor Barristan. — Meereen está sobrepovoada e cheia de bocas famintas, e você têm muitos inimigos aqui dentro. Temo que não possamos resistir a um cerco durante muito tempo. Defrontemos o inimigo quando ele vier para norte, em terreno da minha escolha.
— Defrontar o inimigo — ecoou ela — com os libertos que disse estarem meio treinados e sem batismo de sangue.
— Todos estivemos por batizar um dia, Vossa Graça. Os Imaculados ajudarão a enrijecê-los. Se eu tivesse quinhentos cavaleiros...
— Ou cinco. E se eu lhe der os Imaculados não terei ninguém além das Feras de Bronze para controlar Meereen. — Quando Sor Barristan não a contestou, Dany fechou os olhos. Deuses, orou, levou Khal Drogo, que era o meu sol-e-estrelas. Levou o nosso valente filho antes de ele respirar pela primeira vez. Já obteve de mim o seu sangue. Ajude-me agora, suplico-lhes. Dê-me a sabedoria para ver o caminho, que me aguarda, e a força para fazer o que tiver de fazer para manter os meus filhos em segurança.
Os deuses não responderam.
Quando voltou a abrir os olhos, Daenerys disse:
— Não posso combater dois inimigos, um no interior e outro no exterior. Se quiser conservar Meereen, tenho de ter o apoio da cidade. De toda a cidade. Preciso... preciso... — Não conseguiu dizê-lo.
— Vossa Graça? — instou Sor Barristan com gentileza. Uma rainha não pertence a si, mas ao seu povo.
— Preciso de Hizdahr zo Loraq.
MELISANDRE
Nunca estava realmente escuro nos aposentos de Melisandre.
Três velas de sebo ardiam no parapeito da janela para manter à distância os terrores da noite. Outras quatro tremeluziam junto da cama, duas de cada lado. Na lareira, um fogo era mantido ardendo de dia e de noite. A primeira lição que aqueles que a serviam tinham de aprender era que nunca, nunca se podia permitir que o fogo se apagasse.
A sacerdotisa vermelha fechou os olhos e proferiu uma prece, após o que voltou a abri-los para encarar a lareira. Mais uma vez. Tinha de ter a certeza. Muitos sacerdotes e sacerdotisas antes dela tinham sido derrubados por falsas visões, por verem o que desejavam ver em vez daquilo que o Senhor da Luz enviara. Stannis, o rei que transportava aos ombros o destino do mundo, Azor Ahai renascido, estava marchando para o sul, para o perigo. Decerto que R'hllor lhe concederia um vislumbre daquilo que o aguardava. Mostre-me Stannis, Senhor, rezou. Mostre-me o seu rei, o seu instrumento.
Visões dançaram na frente dela, douradas e escarlates, tremeluzentes, formando-se, derretendo e dissolvendo-se umas nas outras, formas estranhas, aterrorizadoras e sedutoras. Viu de novo as caras sem olhos, fitando-a com órbitas chorando sangue. Depois as torres junto ao mar, ruindo quando a maré negra se ergueu para varrê-las, subindo das profundezas. Sombras com a forma de crânios, crânios que se transformavam em névoa, corpos unidos em luxúria, contorcendo-se, rolando, esgatanhando-se. Através de cortinas de fogo, grandes sombras aladas rodopiavam num duro céu azul.
A menina. Tenho de voltar a encontrar a menina, a menina cinzenta no cavalo moribundo. Jon Snow esperaria isso dela, e em breve. Não seria suficiente dizer que a menina estava em fuga. Ele iria quer mais, iria querer o quando e o onde, e ela não tinha isso para lhe dar. Só vira a menina uma vez. Uma menina cinzenta como cinza, e ainda eu observava já ela se desfazia e era soprada para longe.
Um rosto tomou forma dentro da lareira. Stannis?, pensou, só por um momento... mas não, aquelas não eram as suas feições. Um rosto de madeira, de um branco de cadáver. Seria aquele o inimigo? Um milhar de olhos vermelhos flutuaram nas chamas que se erguiam. Ele está a ver-me. A seu lado, um rapaz com uma cara de lobo atirou a cabeça para trás e uivou.
A sacerdotisa vermelha estremeceu. Sangue escorreu-lhe pela coxa abaixo, negro e fumegante. O fogo estava dentro dela, uma agonia, um êxtase, preenchendo-a, crestando-a, transformando-a. Tremelucências de calor desenharam padrões na sua pele, insistentes como a mão de um amante. Estranhas vozes chamaram-na de dias há muito passados. Ouviu uma mulher chorar: "Melony." Uma voz de homem chamou: "Lote Sete." Ela chorava, e as suas lágrimas eram chamas. Mas mesmo assim continuou a absorvê-lo.
Flocos de neve rodopiaram caindo de um céu escuro, e cinzas ergue- ram-se ao seu encontro, e o cinzento e o branco giraram em volta um do outro enquanto setas chamejantes arqueavam por cima de uma muralha de madeira e coisas mortas se arrastavam, silenciosas, pelo frio, sob um grande penhasco cinzento onde fogueiras ardiam dentro de uma centena de grutas. Depois, o vento começou a soprar e a névoa branca varreu a cena, impossivelmente fria e, uma por uma, as fogueiras apagaram-se. Depois disso só restaram os crânios.
Morte pensou Melisandre. Os crânios são morte.
As chamas crepitavam suavemente, e no seu crepitar ouviu o nome sussurrado de Jon Snow. A longa cara dele flutuou na sua frente, retratada com línguas de vermelho e laranja, aparecendo e voltando a desaparecer, uma sombra entrevista por trás de uma cortina esvoaçante. Ora era homem, ora lobo, ora um novo homem. Mas os crânios também ali estavam, os crânios rodeavam-no por completo. Melisandre já antes vira o perigo em que o rapaz se encontrava, tentara preveni-lo desse perigo. Inimigos a toda a sua volta, punhais no escuro. Ele não queria dar-lhe ouvidos.
Os incrédulos nunca davam ouvidos até ser tarde demais.
— Que está vendo senhora? — perguntou o rapaz em voz baixa.
Crânios. Mil crânios e outra vez o bastardo. Jon Snow. Sempre que lhe perguntavam o que via no interior dos seus fogos, Melisandre respondia: "Muito e mais ainda," mas ver nunca era tão simples como aquelas palavras sugeriam. Era uma arte e, como todas as artes, exigia mestria, disciplina, estudo. Dor. Isso também. R'hllor falava aos seus escolhidos através do fogo abençoado, numa língua de cinzas e brasas e chamas retorcidas que só um deus podia compreender verdadeiramente. Melisandre praticara a sua arte durante anos sem conta, e pagara o preço. Não havia ninguém, mesmo na sua ordem, que tivesse a sua perícia em ver os segredos semirrevelados e semiocultos no interior das chamas sagradas.
Mas agora nem sequer parecia ser capaz de encontrar o seu rei. Rezo por um vislumbre de Azor Ahai, e R’hllor envia-tne apenas o Snow.
— Devan — chamou — uma bebida. — Tinha a garganta dorida e ressecada.
— Sim, senhora. — O rapaz serviu-lhe uma taça de água tirada da bilha de pedra junto à janela e trouxe-a.
— Obrigada. — Melisandre encheu a boca com água, engoliu, e dirigiu ao rapaz um sorriso. Isso o fez corar. O rapaz estava meio apaixonado por ela, bem o sabia. Ele me teme, me deseja e me adora.
Mesmo assim, Devan não estava contente por estar ali. O rapaz tivera grande orgulho em servir como escudeiro de um rei, e Stannis feriu-o quando lhe ordenou para permanecer em Castelo Negro. Como qualquer rapaz da sua idade, tinha a cabeça cheia de sonhos de glória; sem dúvida que andara imaginando a perícia que exibiria em Bosque Profundo. Outros rapazes da sua idade tinham ido para sul, a fim de servirem como escudeiros dos cavaleiros do rei e irem para a batalha a seu lado. A exclusão de Devan devia ter parecido uma censura, uma punição por algum fracasso da sua parte, ou talvez por algum fracasso do seu pai.
Na verdade, estava ali porque Melisandre o pedira. Os quatro filhos mais velhos de Davos Seaworth tinham perecido na batalha da Água Negra, quando a frota do rei fora consumida por fogo verde. Devan era o quinto filho, e estava mais seguro ali com ela do que ao lado do rei. Lorde Davos não lhe agradeceria pelo fato mais do que o próprio rapaz agradecia, mas parecia-lhe que Seaworth já sofrera desgostos suficientes. Apesar de estar tão mal orientado, não se podia duvidar da sua lealdade a Stannis. Ela vira-o nas chamas.