Além disso, Devan era rápido, esperto e capaz, o que era mais do que se podia dizer da maior parte dos seus ajudantes. Quando marchara para sul, Stannis deixara para trás uma dúzia dos seus homens para servirem-na, mas a maioria era inútil. Sua Graça tivera necessidade de todas as espadas, portanto só pudera dispensar grisalhos e aleijados. Um homem fora cegado por um golpe na cabeça durante a batalha da Muralha, outro fora mutilado quando a queda do cavalo lhe esmagara as pernas. O sargento perdera um braço devido à maça de um gigante. Três dos seus guardas tinham sido castrados por Stannis por violarem mulheres selvagens. Também dispunha de dois bêbados e de um covarde. Este último deveria ter sido enforcado, como o próprio rei admitira, mas provinha de uma família nobre e o pai e os irmãos tinham-se mantido firmes desde o início.
A sacerdotisa vermelha sabia que ter guardas à sua volta iria sem dúvida ajudar os irmãos negros a manterem-se devidamente respeitosos, mas não era provável que nenhum dos homens que Stannis lhe dera fosse de grande ajuda se ela se achasse em perigo. Não importava. Melisandre de Asshai não temia por si. R'hllor a protegeria.
Bebeu mais um gole de água, pôs a taça de lado, pestanejou e espre- guiçou-se e levantou-se da cadeira com os músculos doloridos e rígidos. Depois de olhar as chamas durante tanto tempo, precisou de alguns momentos para se ajustar à fraca luz. Tinha os olhos secos e cansados, mas se os esfregasse só ficariam pior.
Viu que o fogo enfraquecera.
— Devan, mais lenha. Que horas são?
— É quase alvorada, senhora.
Alvorada. É-nos concedido mais um dia. R’hllor seja louvado. Os terrores da noite recuam. Melisandre passara a noite na cadeira junto ao fogo, como fazia tão frequentemente. Com Stannis por longe, a sua cama tinha pouco uso. Não tinha tempo para dormir, com o peso do mundo sobre os ombros. E temia sonhar. O sono é uma pequena morte, os sonhos são sussurros do Outro, aquele que quer arrastar a todos para a sua noite eterna. Preferia ficar sentada, banhada na luz rubra das abençoadas chamas do seu senhor vermelho, com o rosto corado pelo embate do calor como se fosse por beijos de um amante. Em algumas noites dormitava, mas nunca durante mais que uma hora. Um dia, rezava Melisandre, não dormiria de todo. Um dia ficaria livre de sonhos. Melony, pensou. Lote Sete.
Devan alimentou o fogo com mais lenha até as chamas voltarem a saltar, ferozes e furiosas, afastando as sombras para os cantos da sala, devorando todos os sonhos indesejados de Melisandre. A escuridão volta a recuar... por um bocadinho. Mas atrás da Muralha, o inimigo se fortalece e, se ele vencer; a alvorada nunca regressará. Perguntou a si própria se teria sido a cara dele que viu, fitando-a nas chamas. Não. Decerto que não. As suas feições deviam ser mais assustadoras do que aquilo, frias e negras e muito terríveis para alguém as ver e sobreviver. O homem de madeira que vislumbrara, contudo, e o rapaz com a cara de lobo... eram seus servos, decerto... os seus campeões, como Stannis era o dela.
Melisandre dirigiu-se à janela, abriu as janelas. Lá fora, o leste tinha apenas começado a clarear, e as estrelas da manhã ainda pairavam num céu negro como breu. Castelo Negro já começava a despertar com homens de mantos negros que abriam caminho pelo pátio a fim de quebrarem o jejum com uma tigela de papas antes de substituírem os irmãos no topo da Muralha. Alguns flocos de neve entraram pela janela aberta, flutuando no vento.
— A senhora deseja quebrar o jejum? — perguntou Devan.
Comida. Sim, eu devia comer. Em certos dias esquecia-se. R'hllor fornecia-lhe toda a nutrição de que o corpo necessitava, mas era melhor esconder isso dos mortais.
Aquilo de que necessitava era de Jon Snow, não de pão frito e bacon, mas não valia a pena mandar Devan buscar o Senhor Comandante. Ele não viria ao seu chamado. Snow ainda preferia viver nas traseiras do armeiro, num par de modestos quartos anteriormente ocupados pelo falecido ferreiro da Patrulha. Talvez não se achasse digno da Torre do Rei, ou talvez não se importasse com isso. Esse era o seu erro, a falsa humildade da juventude que é em si mesma uma espécie de orgulho. Nunca era sensato que um governante renunciasse ao aparato do poder, pois o próprio poder é, em boa medida, gerado por esse aparato.
O rapaz não era inteiramente ingênuo, porém. Sabia que não era boa ideia vir aos aposentos de Melisandre como um suplicante, insistindo que ela devia ir ter com ele se tivesse necessidade de falar com ele. E era frequente que, quando o fazia, ele a mantivesse à espera ou se recusasse a recebê-la. Isso, pelo menos, era astuto.
— Quero chá de urtiga, um ovo cozido e pão com manteiga. Pão fresco, por favor, não frito. Pode também ir à procura do selvagem. Diga-lhe que tenho de falar com ele.
— O Camisa de Chocalho, senhora?
— E depressa.
Enquanto o rapaz andava por fora, Melisandre lavou-se e mudou de roupa. Tinha as mangas cheias de bolsos escondidos, e verificou-os cuidadosamente como fazia todas as manhãs, a fim de se assegurar de que todos os seus pós estavam no lugar. Pós para tornar o fogo verde, azul ou prateado, pós para fazer uma chama rugir, silvar e saltar mais alto do que um homem, pós para fazer fumo. Um fumo para a verdade, um fumo para a luxúria, um fumo para o medo e o espesso fumo negro que podia matar um homem num instante. A sacerdotisa vermelha armava-se com uma pitada de cada um.
A arca entalhada que trouxera do outro lado do mar estreito estava já mais de três quartos vazia. E embora Melisandre tivesse os conhecimentos para fazer mais pós, faltavam-lhe muitos ingredientes raros. Os meus feitiços devem bastar. Era mais forte na Muralha, mais forte mesmo do que em Asshai. Todas as suas palavras e gestos eram mais potentes, e conseguia fazer coisas que nunca antes tinha feito. As sombras que gerarei aqui serão terríveis, e nenhuma criatura das trevas lhes resistirá. Com tais feitiçarias sob o seu domínio, poderia deixar em breve de ter necessidade dos débeis truques dos alquimistas e piromantes.
Fechou a arca, fez girar a fechadura e escondeu a chave dentro das saias, noutro bolso secreto. Depois ouviu-se uma batida na porta. O seu sargento maneta, ajuizando pelo som trémulo da batida.
— Senhora Melisandre, o Senhor dos Ossos chegou.
— Deixe-o entrar. — Melisandre voltou a instalar-se na cadeira junto da lareira.
O selvagem usava um justilho de couro fervido sem mangas, salpicado de tachões de bronze, por baixo de um manto quente mosqueado em tons de verde e castanho. Nada de ossos. Também estava envolto em sombras, em farrapos de uma irregular névoa cinzenta, entrevistos, que lhe deslizavam pela cara e silhueta a cada passo que dava. Coisas feias. Tão feias como os ossos. Cabelo recuado nas têmporas, olhos escuros e muito próximos, cara encovada, um bigode que se contorcia como uma minhoca por cima de uma boca cheia de dentes partidos e castanhos.
Melisandre sentiu o calor na base da garganta quando o rubi despertou com a proximidade do seu escravo.
— Pôs de lado a armadura de ossos — observou.