— A barulheira ia dando comigo em doido.
— Os ossos lhe protegem — fez-lhe lembrar. — Os irmãos negros não gostam de ti. Devan me diz que ontem mesmo discutiu com alguns durante o jantar.
— Alguns. Estava comendo sopa de feijão e bacon enquanto Bowen Marsh não parava de falar sobre superioridade moral. A Velha Granada julgou que eu estava a espiando e anunciou que não toleraria assassinos à escuta das suas reuniões. Disse-lhe que nesse caso talvez não as devessem faze-las junto à lareira. Bowen pôs-se vermelho e fez uns ruídos sufocados, mas não passou disso. — O selvagem sentou-se no parapeito da janela, tirou o punhal da bainha. — Sc algum corvo quiser enfiar-me uma faca entre as costelas enquanto eu estou engolindo o jantar, pois que tente. As papas aguadas do Hobb desceriam melhor com uma gota de sangue a temperá-las.
Melisandre não prestou atenção ao aço nu. Se o selvagem quisesse lhe fazer mal, teria visto nas chamas. O perigo para a sua pessoa foi a primeira coisa que aprendeu a ver, quando ainda era meio criança, uma menina escrava ligada para a vida ao grande templo vermelho. Ainda era a primeira coisa que procurava quando fitava um fogo.
— São os olhos deles que te deviam preocupar, não as facas — avisou.
— O encantamento, pois. — No grilhão de ferro negro que lhe rodeava o pulso, o rubi pareceu pulsar. Baseu-lhe com o gume da faca. O aço tiniu tenuemente contra a pedra. — Sinto-o quando durmo. Quente na pele, mesmo através do ferro. Suave como um beijo de mulher. O seu beijo. Mas às vezes, nos meus sonhos, começa a arder e os seus lábios transformam-se em dentes. Todos os dias penso em como seria fácil arrancá-lo, e todos os dias não arranco. Terei também de usar os malditos ossos?
— O feitiço é leito de sombra e sugestão. Os homens veem o que esperam ver. Os ossos fazem parte disso. — Terei errado em poupar este tipo? — Se o encantamento falhar, eles lhe matarão.
O selvagem pôs-se a limpar a porcaria de debaixo das unhas com a ponta do punhal.
— Cantei as minhas canções, combati as minhas batalhas, bebi vinho de verão, saboreei a mulher do dornês. Um homem devia morrer como viveu. Para mim, isso quer dizer de aço na mão.
Será que ele sonha com a morte? Poderá ter sido tocado pelo inimigo? A morte é o seu domínio, os mortos os seus soldados.
— Terá trabalho para o seu aço bem em breve. O inimigo está em movimento, o inimigo verdadeiro. E os patrulheiros do Lorde Snow regressarão antes do dia acabar, com os seus olhos cegos e ensanguentados.
Os olhos do selvagem estreitaram-se. Olhos cinzentos, olhos castanhos; Melisandre via a cor mudar a cada pulsação do rubi.
— Arrancar os olhos é obra do Chorão. O melhor dos corvos é o corvo cego, o gosta de dizer. Às vezes, acho que gostaria de arrancar os seus próprios olhos por andarem sempre a lacrimejar e a dar comichão. Snow anda a partir do princípio de que o povo livre vai se virar para Tormund para liderá-lo porque era isso que ele faria. Ele gostava de Tormund, e o velho intrujão também gostava dele. Mas se for o Chorão... não será bom. Nem para ele, nem para nós.
Melisandre anuiu solenemente, como se tivesse acolhido as palavras dele com seriedade, mas esse tal Chorão não importava. Ninguém do seu povo livre importava. Eram um povo perdido, um povo condenado, destinado a desaparecer da face da terra como os filhos da floresta tinham desaparecido. Mas estas não eram palavras que ele quisesse ouvir, e ela não podia arriscar-se a perdê-lo, não naquele momento.
— Quão bem conhece o Norte?
Ele guardou a faca.
— Tão bem como qualquer patrulheiro. Algumas partes melhor do que outras. Há montes de Norte. Porquê?
— A menina — disse ela. — Uma menina de cinza num cavalo moribundo. Irmã do Jon Snow. — Quem mais poderia ser? Corria para junto dele em busca de proteção, pelo menos isso Melisandre vira com clareza. — Vi-a nas minhas chamas, mas só por uma vez. Temos de conquistar a confiança do Senhor Comandante, e a única maneira de fazer isso é salvando-a.
— Eu ir salvá-la, quer dizer? O Senhor dos Ossos? — riu-se. — Nunca ninguém confiou no Camisa de Chocalho, a não ser os idiotas. Snow não é tal coisa. Se a irmã precisa de ser salva, ele enviará os corvos dele. Era o que eu faria.
— Ele não é você. Proferiu os seus votos e tenciona viver segundo eles. A Patrulha da Noite não participa. Mas você não pertence à Patrulha da Noite. Podes fazer o que ele não pode.
— Se o seu rígido senhor comandante autorizar. Os seus fogos mostraram-na onde encontrar essa menina?
— Vi água. Profunda, azul e parada, com uma fina camada de gelo a formar-se sobre ela. Parecia prolongar-se até ao infinito.
— O Lago Longo. Que mais viu em volta da menina?
— Colinas. Campos. Árvores. Um veado. Pedras. Está se mantendo bem longe das aldeias. Quando pode cavalga ao longo do leito de pequenos riachos, para despistar os perseguidores.
Ele franziu o semblante.
— Isso tornará a coisa difícil. Disse que estava vindo para norte. O lago estava a leste ou a oeste dela?
Melisandre fechou os olhos, recordando.
— A oeste.
— Então não vem pela estrada de rei. Menina esperta. Há menos vigias do outro lado, e mais cobertura. E alguns esconderijos que eu próprio usei de vez... — interrompeu-se ao ouvir o som de um corno de guerra, e pôs-se rapidamente em pé. Melisandre sabia que por todo o Castelo Negro o mesmo silêncio caíra, e todos os homens e rapazes se viraram para a Muralha, à escuta, à espera. Um sopro longo no corno queria dizer patrulheiros de regresso, mas dois...
Chegou o dia, pensou a sacerdotisa vermelha. Agora, Lorde Snow terá de me dar ouvidos.
Depois do longo e fúnebre grito do corno ter se desvanecido, o silêncio pareceu estender-se por uma hora.
— Então é só um. Patrulheiros.
— Patrulheiros mortos. — Melisandre também se pôs em pé. — Vai vestir os seus ossos e espera. Eu regressarei.
— Eu deveria ir com você.
— Não seja pateta. Depois de eles descobrirem o que descobrirão, ver um selvagem irá inflamá-los. Fica aqui até o sangue deles ter tempo para arrefecer.
Devan estava subindo os degraus da Torre do Rei quando Melisandre fez a sua descida, flanqueada por dois dos guardas que Stannis deixara com ela. O rapaz trazia numa bandeja o seu meio esquecido desjejum.
— Esperei até Hobb tirar os pães do forno, senhora. O pão ainda está quente.
— Deixe-o nos meus aposentos. — O selvagem o comeria, provavelmente. — Lorde Snow tem necessidade de mim, do outro lado da Muralha. — Ele ainda não sabe, mas em breve...
Lá fora, uma neve ligeira começara a cair. Uma multidão de corvos já se reunira junto do portão quando Melisandre e a sua escolta chegaram, mas abriram alas para a sacerdotisa vermelha. O Senhor Comandante precedera-a atravessando o gelo, acompanhado por Bowen Marsh e por vinte lanceiros. Snow também enviara uma dúzia de arqueiros para o topo da Muralha, para o caso de algum inimigo estar escondido na floresta próxima. Os guardas ao portão não eram homens da rainha, mas deixaram-na passar mesmo assim.
Estava frio e escuro debaixo do gelo, no estreito túnel que se curvava e serpenteava através da Muralha. Morgan foi à sua frente com um archote e Merrel seguiu atrás dela com um machado. Ambos os homens eram uns bêbados sem remédio, mas àquela hora da manhã estavam sóbrios. Homens da rainha, pelo menos em nome, ambos tinham um saudável medo dela, e Merrel podia ser terrível quando não estava bêbado. Não teria necessidade deles naquele dia, mas Melisandre fazia questão de manter um par de guardas à sua volta, fosse para onde fosse. Isso enviava uma certa mensagem. O aparato do poder.