Jon Snow ficou tenso.
— Você.
— Lorde Snow. — O selvagem sorriu-lhes com uma boca de dentes castanhos e quebrados. O rubi no seu pulso reluziu à luz da manhã como uma pálida estrela vermelha.
— O que estás você fazendo aqui?
— Quebrando o jejum. Pode partilhá-lo, se quiser.
— Não quebrarei pão com você.
— A perda é sua. O pão ainda está quente. Isso, pelo menos, Hobb consegue fazer. — O selvagem arrancou um pedaço. — Podia visita-lo com igual facilidade, senhor. Aqueles guardas à sua porta são uma piada de mau gosto. Um homem que trepou a Muralha meia centena de vezes consegue subir a uma janela com bastante facilidade. Mas de que me serviria mata-lo? Os corvos só escolheriam alguém pior. — Mastigou, engoliu.
— Ouvi falar dos seus patrulheiros. Devia ter me enviado com eles.
— Para poder denunciá-los ao Chorão?
— Estamos falando de traições? Como se chamava aquela vossa selvagem, Snow? Ygritte, não era? — o selvagem virou-se para Melisandre.
— Precisarei de cavalos. Meia dúzia de bons animais. E isto não é algo que possa fazer sozinho. Algumas das esposas de lanças encurraladas em Vila Toupeira devem servir. Mulheres servirão melhor para isto. É mais provável que a menina confie nelas, e elas me ajudarão a levar a cabo um certo truque que tenho em mente.
— Do que ele está falando? — perguntou Jon Snow.
— Da sua irmã. — Melisandre pousou-lhe a mão no braço. — Não pode ajudá-la, mas ele pode.
Snow afastou o braço bruscamente.
— Acho que não. Não conhece essa criatura. Camisa de Chocalho podia lavar as mãos cem vezes por dia e mesmo assim ficaria com sangue debaixo das unhas. Era mais provável violar e assassinar Arya do que salvá-la. Não. Se foi isto que viu nos seus fogos, senhora, deve ter cinzas nos olhos. Se ele tentar abandonar Castelo Negro sem a minha autorização, eu próprio lhe cortarei a cabeça.
Ele não me deixa alternativa. Assim seja.
— Devan, deixe-nos — disse, e o escudeiro escapuliu-se e fechou a porta atrás de si.
Melisandre tocou no rubi que tinha ao pescoço e proferiu uma palavra.
O som ecoou estranhamente nos cantos da sala, e torceu-se como um verme no interior dos ouvidos deles. O selvagem ouviu uma palavra, o corvo outra. Nenhuma era a palavra que lhe saiu dos lábios. O rubi no pulso do selvagem escureceu, e os farrapos de luz e sombra em volta dele contorceram-se e desvaneceram-se.
Os ossos ficaram; as costelas chacoalhantes, as garras e dentes ao longo dos seus braços e ombros, a grande clavícula amarelada que transportava aos ombros. O crânio quebrado de gigante continuou a ser um crânio quebrado de gigante, amarelelado e rachado, sorrindo o seu sorriso manchado e selvagem.
Mas o cabelo recuado nas têmporas dissolveu-se. O bigode castanho, o queixo nodoso, a pele macilenta e amarelada e os pequenos olhos escuros, tudo derreseu. Dedos cinzentos rastejaram através de longos cabelos castanhos. Rugas de riso apareceram-lhe aos cantos da boca. E de repente surgiu maior do que antes, mais largo de peito e ombros, de pernas longas e esguio, com a cara escanhoada e queimada pelo vento.
Os olhos de Jon Snow abriram-se mais.
— Mance?
— Lorde Snow. — Mance Rayder não sorriu.
— Ela queimou-lhe.
— Ela queimou o Senhor dos Ossos.
Jon Snow virou-se para Melisandre.
— Que feitiçaria é esta?
— Chame-lhe o que quiser. Encantamento, aparência, ilusão. R'hllor é Senhor da Luz, Jon Snow, e é concedida aos seus servos a capacidade de tecer com ela, como outros tecem com fio.
Mance Rayder soltou uma gargalhada.
— Eu também tinha as minhas dúvidas, Snow, mas porque não dei- xá-la tentar? Era isso ou deixar que Stannis me assasse.
— Os ossos ajudam — disse Melisandre. — Os ossos recordam. Os encantamentos mais fortes são feitos dessas coisas. As botas de um morto, uma madeixa de cabelo, um saco de ossos de dedos. Com palavras murmuradas e orações, a sombra de um homem pode ser puxada de coisas dessas e enrolada em volta de outro homem como um manto. A essência de quem a usa não muda, só a sua aparência.
Fazia com que aquilo parecesse coisa simples e fácil. Eles nunca precisariam de saber quão difícil foi, ou quanto lhe custara. Essa era uma lição que Melisandre aprendeu muito antes de Asshai; quanto mais fácil parecesse um feitiço, mais os homens temiam o feiticeiro. Quando as chamas tinham lambido Camisa de Chocalho, o rubi na sua garganta ficou tão quente que temeu que a sua pele pudesse começar a fumegar e a enegrecer. Felizmente o Lorde Snow a poupou dessa agonia com as suas setas. Enquanto Stannis se irritou com o desafio, ela estremeceu de alívio.
— O nosso falso rei tem um feitio melindroso — disse Melisandre a Jon Snow — mas não lhe trairá. Lembre-se de que nós temos o filho dele. E ele deve-lhe mesmo a vida.
— A mim? — Snow pareceu surpreendido.
— A quem haveria de ser, senhor? Só o sangue da sua vida podia pagar pelos seus crimes, segundo as suas leis, e Stannis Baratheon não é homem para ir contra a lei... mas como disse tão sabiamente, as leis dos homens terminam na Muralha. Eu disse-lhe que o Senhor da Luz ouviria as suas preces. Queria uma maneira de salvar a sua irmã e continuar a manter-se fiel à honra que tanto significa para ti, aos juramentos que proferiu perante o seu deus de madeira. — Apontou com um dedo pálido. — Ali está ele, senhor. O salvamento de Arya. Um presente do Senhor da Luz... e meu.
FEDOR
Ouviu primeiro as mulheres, ladrando enquanto corriam para casa. O tamborilar dos cascos dos cavalos ecoando em lajes o colocou em pé com um salto, com as correntes retinindo. Aquela que tinha entre os tornozelos não tinha mais de trinta centímetros de comprimento, encurtando-lhe o passo até o transformar num arrastar de pés. Assim era difícil mexer-se depressa, mas tentou o melhor possível, saltitando da enxerga num estridor de metal. Ramsay Bolton regressara e quereria o seu Fedor à mão para servi-lo.
Lá fora, sob um frio céu outonal, os caçadores estavam jorrando pelos portões. Ben Ossos seguia à frente, com as mulheres ladrando e latindo a toda a sua volta. Atrás vinha Esfolador, Alyn Azedo e Damon Dança-Para-Mim com o seu longo chicote oleado, e depois os Walders montando os potros cinzentos que a Senhora Dustin lhes dera. Sua senhoria montava Sangue, um garanhão vermelho com uma personalidade que se adequava à do cavaleiro. Estava rindo. Fedor sabia que isso podia ser muito bom ou muito mau.
Os cães caíram-lhe em cima antes de conseguir perceber qual das duas opções era a certa, atraídos pelo seu odor. Os cães gostavam do Fedor; era mais frequente dormir com eles do que não, e por vezes Ben Ossos deixava-o partilhar do jantar deles. A matilha correu pelas lajes ladrando, rodeando-o, saltando para lhe lamber a cara imunda, mordiscando-lhe as pernas. Helicent tomou-lhe a mão esquerda entre os dentes e sacudiu-a com tal violência que Fedor temeu perder mais dois dedos. A Jeyne Vermelha atirou-se-lhe contra o peito e derrubou-o. Era músculo duro e esguio, enquanto Fedor era pele cinzenta e solta e ossos quebradiços, um esfomeado de cabelo branco.