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Não era suficientemente tolo para verbalizar tais pensamentos. Tyrion Lannister dispensava todos os deuses, mas naquele navio era sensato mostrar algum respeito pelo rubro R'hllor. Jorah Mormont tirou-lhe as correntes e grilhões depois de estarem solidamente a caminho, e o anão não desejava dar-lhe motivo para voltar a prendê-las.

O Selaesori Qhoran era uma banheira bamboleante de quinhentas toneladas, com um portão profundo, castelos elevados à proa e à popa, e um único mastro entre ambos. O castelo de proa tinha uma grotesca figura de proa, uma qualquer eminência carunchosa com ar de prisão de ventre e um rolo enfiado debaixo de um braço. Tyrion nunca viu navio mais feio. A tripulação não era mais bonita. O capitão, um impiedoso homem de língua maligna e barriga de barril com olhos avarentos e muito próximos, era mal jogador de cyvasse e pior perdedor. Abaixo dele serviam quatro imediatos, todos libertos, e cinquenta escravos vinculados ao navio, todos com uma versão tosca da figura de proa da coca tatuada numa bochecha. Os marinheiros gostavam de chamar Tyrion de "Sem-Nariz" por mais que ele lhes dissesse que o seu nome era Hugor Hill.

Três dos imediatos e mais de três quartos da tripulação eram fervorosos adoradores do Senhor da Luz. Tyrion tinha menos certezas a respeito do capitão, o qual aparecia sempre para as preces da noite, mas não desempenhava nelas mais nenhum papel. Mas Moqorro era o verdadeiro capitão do Selaerosi Qhoran, pelo menos naquela viagem.

— Senhor da Luz, abençoe o seu escravo Moqorro, e ilumine o seu caminho nos lugares escuros do mundo — trovejou o sacerdote vermelho. — E defenda o seu honrado escravo Benerro. Conceda-lhe coragem. Conceda-lhe sabedoria. Encha-lhe o coração de fogo.

Foi então que Tyrion reparou em Centava observando aquela farsa da íngreme escada de madeira que levava para baixo do castelo de popa. Estava num dos degraus mais baixos, de modo que só o topo da cabeça se encontrava visível. Sob o capuz, os olhos brilhavam grandes e brancos à luz da fogueira noturna. Tinha consigo o seu cão, o grande cão de caça cinzento que montava em justas fingidas.

— Senhora — chamou Tyrion em voz baixa. Na verdade, ela não era senhora alguma, mas Tyrion não conseguia levar-se articulando aquele seu nome pateta, e não ia chamar-lhe "menina" ou "anã."

Ela retraiu-se.

— Eu... eu não tinha te visto.

— Bem, sou pequeno.

— Eu... eu não estava bem... — O cão ladrou.

Estava doente de desgosto, você quer dizer.

— Se puder ajudar...

— Não. — E foi com toda a rapidez que ela voltou a desaparecer, retirando-se para baixo, para a cabine que partilhava com o cão e com a porca. Tyrion não podia censurá-la. A tripulação do Selaesori Qhoran ficara bastante satisfeita quando ele subiu a bordo; afinal de contas, um anão dava boa sorte. A sua cabeça foi esfregada tão frequentemente e com tal vigor que era um espanto que não tivesse ficado careca. Mas Centava deparara com uma reação mais dúbia. Podia ser anã, mas também era mulher, e as mulheres davam má sorte a bordo dos navios. Para cada homem que tentava esfregar-lhe a cabeça, havia três que resmungavam maldições em surdina quando ela passava.

E me ver só pode ser sal na sua ferida. Cortaram a cabeça do irmão na esperança de ser a minha, mas aqui estou eu como a porcaria de uma gárgula, oferecendo consolos vazios. Se fosse ela não haveria nada que mais desejasse do que de me empurrar para o mar.

Nada sentia pela menina além de pena. Não merecia mais o horror que sobre ela caiu em Volantis do que o irmão mereceu. Da última vez que a viu, logo antes de deixarem o porto para trás, os olhos dela estavam vermelhos de chorar, dois pavorosos buracos vermelhos numa cara abatida e pálida. Quando içaram a vela, trancou-se na cabine com o cão e o porco, mas à noite ouviam-na chorar. Ainda no dia anterior ouviu um dos imediatos dizer que deviam atirá-la borda fora antes que as lágrimas da menina inundassem o navio. Tyrion não tinha absoluta certeza de que o homem estivesse gracejando.

Depois das preces da noite terminar e a tripulação do navio ter voltado a dispersar, alguns para os seus turnos e outros para comida, rum e redes de dormir, Moqorro permaneceu junto ao seu fogo, como fazia todas as noites. O sacerdote vermelho descansava de dia, mas mantinha uma vigília durante as horas escuras, a fim de cuidar das chamas sagradas para que o Sol regressasse à alvorada.

Tyrion acocorou-se na frente dele e aqueceu as mãos contra o frio da noite. Moqorro não reparou nele durante algum tempo. Estava fitando as chamas trémulas, perdido em alguma visão. Será que ele vê dias vindouros, como afirma? Se assim fosse, esse seria um dom temível. Passado algum tempo, o sacerdote ergueu os olhos para cruzar olhares com o anão.

— Hugor Hill — disse, inclinando a cabeça num aceno solene. — Veio rezar comigo?

— Alguém me disse que a noite é escura e cheia de terrores. O que vê nestas chamas?

— Dragões — disse Moqorro no idioma comum de Westeros. Falava a língua muito bem, quase sem sinal de sotaque. Sem dúvida que essa era uma razão por que o alto sacerdote Benerro o escolhera para levar a fé de R'hllor a Daenerys Targaryen. — Dragões antigos e jovens, verdadeiros e falsos, brilhantes e escuros. E você. Um homem pequeno com uma grande sombra, rosnando no meio de tudo.

— Rosnando? Um tipo amigável como eu? — Tyrion sentia-se quase lisonjeado. E sem dúvida é precisamente isso que ele pretende. Qualquer pateta adora ouvir dizer que é importante. — Talvez tenha sido Centava que ele viu. Somos quase do mesmo tamanho.

— Não, meu amigo.

Meu amigo? Quando foi que isso aconteceu?

— Por acaso terá visto quanto tempo demoraremos a chegar a Me- ereen?

— Está ansioso por contemplar a libertadora do mundo?

Sim e não. A libertadora do mundo pode cortar-me a cabeça ou dar-me aos dragões como petisco.

— Eu não — disse Tyrion. — Para mim, tudo gira em volta das azeitonas. Se bem que tema que talvez envelheça e morra antes de saborear uma. Conseguia nadar nado cão mais depressa do que estamos navegando. Diga-me, Selaerosi Qhoran foi um triarca ou uma tartaruga?

O sacerdote vermelho soltou um risinho.

— Nem uma coisa nem outra. Qhoran é... não um governante, mas alguém que serve e aconselha tais pessoas e as ajuda a conduzirem os seus negócios. Vocês, em Westeros, poderiam falar em intendente ou em magíster.

Mão do Rei? Aquilo divertiu-o.

— E selaesori?

Moqorro tocou o nariz.

— Imbuído de um aroma agradável. Aromático, diria você? Florido?

— Então Selaesori Qhoran quer dizer Intendente Fedorento, mais ou menos?

— Antes Intendente Aromático.

Tyrion exibiu um sorriso torto.

— Acho que vou ficar com Fedorento. Mas agradeço-lhe pela aula.

— Me agrada ter-lhe esclarecido. Algum dia talvez me deixe ensinar-lhee também a verdade de R'hllor.

— Algum dia. — Quando eu for uma cabeça num espigão.

Aos aposentos que partilhava com Sor Jorah chamavam cabine só por cortesia; aquele armário úmido, escuro e malcheiroso mal tinha espaço para pendurar um par de redes para dormir, uma por cima da outra. Foi dar com Mormont estendido na de baixo, balançando lentamente com os movimentos do navio.