Ao meio-dia, Daenerys já sentia o peso da coroa na cabeça e a dureza do banco sob o corpo. Com tantas pessoas ainda aguardando a sua vontade, não parou para comer. Mandou Jhiqui trazer das cozinhas uma bandeja de pão folha, azeitonas, figos e queijo. Foi mordiscando enquanto escutava, bebendo de uma taça de vinho aguado. Os figos eram bons, as azeitonas ainda melhores, mas o vinho deixou-lhe um amargor metálico na boca. As uvas pequenas e de um amarelo claro, nativas daquelas regiões, produziam colheitas de qualidade notavelmente inferior. Teremos de fazer comércio de vinho. Além do mais, os Grandes Mestres tinham queimado os melhores pomares quando queimaram as oliveiras.
À tarde, apareceu um escultor, propondo substituir a cabeça da grande harpia de bronze na Praça da Purificação por outra moldada à imagem de Dany. Ela negou com o máximo de cortesia que conseguiu reunir. Um lúcio de um tamanho sem precedentes fora apanhado no Skahazadhan, e o pescador desejava oferecê-lo à rainha. Dany admirou o peixe com extravagância, recompensou o pescador com uma bolsa de prata e mandou o lúcio para as cozinhas. Um caldeireiro fizera-lhe uma armadura de anéis polidos para levar para a guerra. Aceitou-o com agradecimentos exagerados; era magnífico de contemplar, e todo aquele cobre polido relampejaria lindamente ao sol, embora preferisse estar vestida de aço se houvesse real ameaça de batalha. Até uma menininha que nada sabia dos usos da guerra sabia isso.
Os chinelos que o Rei Carniceiro lhe enviara tinham-se tornado muito desconfortáveis. Dany descalçou-os com um pontapé, e sentou-se com um pé aconchegado debaixo do seu corpo e o outro bandeando para frente e para trás. Não era uma pose lá muito régia, mas estava farta de ser régia. A coroa deixara-a com dor de cabeça, e as nádegas tinham-se-lhe adormecido.
— Sor Barristan — chamou — sei de que qualidade um rei mais precisa.
— Coragem, Vossa Graça?
— Nádegas de ferro — brincou. — Não faço nada a não ser sentar-me.
— Vossa Graça chama muita responsabilidade a si. Deveria permitir que os seus conselheiros partilhassem mais os seus fardos.
— Tenho conselheiros de mais e almofadas de menos. — Dany virou-se para Reznak. — Quantos faltam?
— Vinte e três, se agradar a Vossa Magnificência. Com igual número de reclamações. — O senescal consultou uns papéis. — Um vitelo e três cabras. O resto há de ser ovelhas ou carneiros, sem dúvida.
— Vinte e três. — Dany suspirou. — Os meus dragões desenvolveram um gosto prodigioso por carneiro desde que começamos a pagar aos pastores por aquilo que matam. Essas reclamações foram provadas?
— Alguns homens trouxeram ossos queimados.
— Os homens fazem fogueiras. Os homens cozinham carneiro. Ossos queimados nada provam. O Ben Castanho diz que há lobos vermelhos nas colinas fora da cidade, bem como chacais e cães selvagens. Teremos de pagar boa prata por todos os carneiros que se perdem entre Yunkai e o Skahazadhan?
— Não, Magnificência. — Reznak fez uma mesura. — Devo mandar estes patifes embora, ou quer vê-los açoitados? Daenerys mexeu-se no banco.
— Nenhum homem deverá alguma vez ter medo de vir falar comigo.
Não duvidava de que algumas reclamações seriam falsas, mas as genuínas seriam mais. Os dragões tinham crescido muito para se contentarem com ratazanas, gatos e cães. Quanto mais comerem, maiores ficarão, avisara Sor Barristan, e quanto maiores ficarem, mais comerão. Drogon, em particular, vagueava até bastante longe e podia facilmente devorar uma ovelha por dia. — Pague-lhes o valor dos seus animais — disse a Reznak —mas os reclamantes terão de se apresentar no Templo das Graças e prestar um juramento sagrado perante os deuses de Ghis.
— Assim será feito. — Reznak virou-se para os peticionários. — Sua Magnificência, a Rainha, consentiu em compensar cada um de vocês pelos animais que perderam — disse-lhes, na língua ghiscariana. — Apresentem-se amanhã aos meus agentes, e serão pagos em dinheiro ou em gêneros, como preferirem.
A proclamação foi recebida num silêncio carrancudo. Julgaria que eles ficariam mais contentes, pensou Dany. Obtiveram o que vieram buscar. Não haverá maneira de agradar a essa gente?
Um homem deixou-se ficar para trás enquanto os outros enfileiravam para sair; um homem atarracado com uma cara queimada pelo vento, esfarrapadamente vestido. O seu cabelo era um barrete de ásperos fios negros arruivados, cortado em volta das orelhas, e segurava numa mão um saco de pano miserável. Mantinha-se de cabeça baixa, fitando o chão de mármore como se tivesse se esquecido de onde estava. E o que quer esse? Perguntou-se Dany.
— Ajoelhem todos para Daenerys Filha da Tormenta, a Não-Queimada, Rainha de Meereen, Rainha dos Ândalos e dos Roinares e dos Primeiros Homens, Khaleesi do Grande Mar de Erva, Quebradora de Correntes e Mãe de Dragões. — gritou Missandei na sua voz aguda e suave.
Quando Dany se pôs em pé, o seu tokar começou a deslizar. Apanhou-o e voltou a pô-lo no lugar.
— Você com o saco — chamou — queria falar conosco? Podes aproximar-te.
Quando ele ergueu a cabeça, tinha os olhos vermelhos e em carne viva como chagas abertas. Dany vislumbrou Sor Barristan deslizando para mais perto, uma sombra branca a seu lado. O homem aproximou-se arrastando os pés como quem tropeça, um passo e depois outro, agarrando-se ao saco. Estará bêbado ou doente? Perguntou-se. Havia terra por baixo das unhas rachadas e amarelas do homem.
— O que é? — perguntou Dany. — Tem alguma injustiça para nos apresentar, alguma petição a fazer? O que quer de nós?
A língua do homem passou nervosamente por lábios gretados e estalados.
— Eu… eu trouxe…
— Ossos? — disse ela com impaciência. — Ossos queimados? Ele ergueu o saco e derramou o seu conteúdo no mármore. E eram ossos, ossos partidos e enegrecidos. Os mais longos tinham sido partidos para a obtenção da medula.
— Foi o preto — disse o homem, com um rosnado ghiscariano — a sombra alada. Desceu do céu e… e… Não. Dany estremeceu. Não, não, oh não.
— Estás surdo, palerma? — perguntou Reznak mo Reznak ao homem. — Não ouviu a minha proclamação? Apresenta-se amanhã aos meus agentes e as ovelhas lhes serão pagas.
— Reznak — disse Sor Barristan em voz baixa — domine a língua e abre os olhos. Aquilo não são ossos de ovelha. Pois não, pensou Dany, aquilo são os ossos de uma criança.
JON
O lobo branco corria através de uma floresta negra, sob um penhasco branco tão alto como o céu. A lua corria com ele deslizando através de um emaranhado de ramos nus por cima da sua cabeça, no céu estrelado.
— Snow — murmurou a Lua. O lobo não deu resposta. A neve rangia sob as suas patas. O vento suspirava por entre as árvores.
À distância, conseguia ouvir os seus companheiros de alcateia o chamando, de igual para igual. Também andavam a caça. Uma violenta chuva castigava o irmão negro enquanto ele dilacerava a carne de uma enorme cabra, lavando o sangue do seu flanco onde o longo chifre da cabra o rasgara. Noutro local, a irmãzinha erguia a cabeça para cantar à Lua, e uma centena de pequenos primos cinzentos interrompia a caçada para cantar com ela. As colinas eram mais quentes onde eles se encontravam, e estavam cheias de comida. Muitas eram as noites em que a alcateia da irmã se empanturrava com a carne de ovelhas, vacas e cavalos, as presas dos homens, e às vezes até com a carne do próprio homem.