— Tenho um tio Brynden — disse Bran. — É tio da minha mãe, na verdade. Chamam-lhe Brynden Peixe-Negro.
— O seu tio pode ter sido batizado em minha honra. Alguns ainda o são. Não tantos como antes. Os homens esquecem. Só as árvores recordam. — A voz dele era tão baixa que Bran tinha de se esforçar para ouvir.
— A maior parte dele transferiu-se para a árvore — explicou a cantora a que Meera chamava Folha. — Viveu para lá da duração da sua vida mortal, e ainda perdura. Por nós, por você, pelos territórios do homem. Só resta um pouco de força na sua carne. Tem mil e um olhos, mas há muito a observar. Um dia saberá.
— Saberei o quê? — perguntou Bran mais tarde aos Reed, quando eles chegaram com archotes ardendo, brilhantes, nas mãos, a fim de o levarem para uma pequena câmara fora da grande caverna onde os cantores tinham feito camas para eles dormirem. — De que se lembram as árvores?
— Dos segredos dos deuses antigos — disse Jojen Reed. Comida, fogo e descanso tinham-no ajudado a recuperar depois das provações da viagem, mas ele agora parecia mais triste, com uma expressão carrancuda, fatigada e perturbada no olhar. — Verdades que os Primeiros Homens conheciam, agora esquecidas em Winterfell, mas não nas regiões selvagens e úmidas. Nós vivemos mais perto da verdura nos nossos pântanos e pauis, e recordamos. Terra e água, solo e pedra, carvalhos, ulmeiros e salgueiros, tudo estava aqui antes de todos nós, e permanecerá depois de partirmos.
— E você também — disse Meera. Aquilo entristeceu Bran. Ese eu não quiser permanecer depois de partirem? quase perguntou, mas engoliu as palavras sem as proferir. Era quase um homem feito, e não queria que Meera o julgasse algum bebê chorão. Em vez disso, disse:
— Talvez vocês também sejam videntes verdes.
— Não, Bran. — Agora Meera soava triste.
— É concedido a poucos o dom de beber dessa fonte verde enquanto ainda residem em carne mortal, ouvir os sussurros das folhas e ver como as árvores veem, como os deuses veem — disse Jojen. — A maioria não é assim abençoada. Os deuses só me deram sonhos verdes. A minha tarefa era trazer-lhe até aqui. O meu papel nisto chegou ao fim.
A Lua era um buraco negro no céu. Lobos uivavam na floresta, farejando coisas mortas entre os montes de neve acumulados pelo vento. Um bando de corvos irrompeu da vertente da colina, soltando os seus gritos penetrantes, asas negras batendo por cima de um mundo branco. Um Sol vermelho nasceu e se pôs e voltou a nascer, pintando as neves em tons de rosa e lilás. Sob a colina, Jojen matutava, Meera preocupava-se e Hodor vagueava por túneis escuros com uma espada na mão direita e um archote na esquerda. Ou seria Bran que vagueava?
Nunca ninguém pode saber.
A grande caverna que se abria para o abismo era negra como breu, negra como alcatrão, mais negra do que as penas de um corvo. A luz entrava como um intruso, indesejada e inoportuna, e depressa voltava a ir-se embora; fogueiras para cozinhar, velas e juncos ardiam por algum tempo, mas depois se apagavam, com as suas breves vidas no fim.
Os cantores fizeram para Bran um trono seu, semelhante àquele em que Lorde Brynden se sentava, represeiro branco salpicado de vermelho, ramos mortos tecidos a raízes vivas. Colocaram-no na grande caverna perto do abismo, onde o ar negro ecoava com o som de água corrente muito abaixo. De suave musgo cinzento fizeram o assento. Depois de ser descido para o lugar, cobriram-no com peles quentes.
E alí ficou, escutando os sussurros roucos do seu professor.
— Nunca tema a escuridão, Bran. — As palavras do lorde eram acompanhadas por uma tênue restolhada de madeira e folhas, por uma ligeira torção na cabeça. — As árvores mais fortes estão enraizadas nos lugares escuros da terra. A escuridão será o seu manto, o seu escudo, o seu leite materno. A escuridão lhe tornará forte.
A Lua era crescente, fina e aguçada como a lâmina de uma faca. Flocos de neve caíram sem um som para amortalharem de branco os pinheiros marciais e as árvores-sentinela. Os montes de neve tornaram-se tão profundos que taparam a entrada para as grutas, deixando uma parede branca que Verão tinha de escavar sempre que saía para se ir se juntar à sua alcateia e caçar. Por aqueles dias não era frequente que Bran patrulhasse com ele, mas em certas noites observava-os de cima.
Voar era ainda melhor do que escalar.
Enfiar-se na pele de Verão tornara-se tão simples para ele como foi em tempos enfiar-se num par de calças, antes de ficar com as costas partidas. Trocar a sua pele pelas penas negras como a noite de um corvo foi mais difícil, mas não tão difícil como ele temeu, com aqueles corvos não foi.
— Um garanhão selvagem empina-se e escoiceia quando um homem tenta montá-lo, e tenta morder a mão que lhe enfia o freio entre os dentes — disse Lorde Brynden — mas o cavalo que tenha conhecido um cavaleiro irá aceitar outro. Jovens ou velhas, estas aves foram todas montadas. Agora escolhe uma, e voa.
Bran escolheu uma ave, e depois outra, sem sucesso, mas o terceiro corvo o fitou com astutos olhos negros, inclinou a cabeça, soltou um quorc e foi assim de repente que deixou de ser um rapaz olhando para um corvo para passar a ser um corvo olhando para um rapaz. A canção do rio tornara-se de súbito mais sonora, os archotes arderam um pouco mais brilhantemente do que antes e o ar encheu-se de estranhos cheiros. Quando tentou falar, a voz saiu num grito e o seu primeiro voo terminou quando colidiu com uma parede e acabou dentro do seu corpo quebrado. O corvo não se machucou. Voou para ele e aterrou-lhe no braço. Não muito tempo depois, já voava pela caverna, serpenteando por entre os longos dentes de pedra que pendiam do teto, batendo mesmo as asas por cima do abismo e descendo para as suas frias e negras profundezas.
Então percebeu de que não estava sozinho.
— Estava mais alguém no corvo — disse ao Lorde Brynden, depois de voltar à sua pele. — Uma menina qualquer. Eu a senti.
— Uma mulher, daqueles que cantam a canção da terra — disse o professor. — Há muito morta, mas permanece uma parte dela, tal como uma parte de ti permaneceria no Verão se a sua carne de rapaz morresse amanhã. Uma sombra na alma. Ela não lhe fará mal.
— Todas as aves têm nelas cantores?
— Todas — disse Lorde Brynden. — Foram os cantores que ensinaram os primeiros homens a enviar mensagens por corvo... mas nesses tempos as aves diziam as palavras. As árvores recordam, mas os homens esquecem, e por isso escrevem as mensagens em pergaminho e atam-nas em volta de patas de aves que nunca partilharam a sua pele.
Bran se lembrou de que a Velha Nan lhe contou uma vez a mesma história, mas quando ele perguntou ao Robb se seria verdade, o irmão riu e perguntou se ele também acreditava em gramequins. Desejava que Robb estivesse agora com eles. Eu lhe diria que conseguia voar.; mas ele não acreditaria, portanto eu teria de lhe mostrar. Aposto que ele também conseguiria aprender a voar, ele e Arya e Sansa, até o bebê Rickon e Jon Snow. Podíamos ser todos corvos e viver na colônia do Meistre Luwin.
Mas esse era só mais um sonho idiota. Em certos dias Bran perguntava a si próprio se tudo aquilo não seria apenas um sonho. Talvez tivesse adormecido no meio da neve e sonhado para si um lugar seguro e quente. Tem de acordar, dizia a si próprio, tem de acordar agora mesmo senão sonha até morrer. Uma ou duas vezes beliscou o braço com os dedos, mesmo com força, mas a única coisa que isso fez foi doer-lhe o braço. A princípio, tentou contar os dias tomando nota de quando despertava e adormecia, mas lá em baixo dormir e acordar tinham tendência a fundir-se. Os sonhos tornavam-se aulas, as aulas tornavam-se sonhos, as coisas aconteciam todas ao mesmo tempo ou não aconteciam de todo. Teria ele feito algo, ou teria apenas sonhado?