— Só um homem em mil nasce troca-peles — disse Lorde Brynden um dia, depois de Bran aprender a voar — e só um troca-peles em mil pode ser um vidente verde.
— Julgava que os videntes verdes eram os feiticeiros dos filhos da floresta — disse Bran. — Dos cantores, digo.
— Em certo sentido. Aqueles que você chama filhos da floresta têm olhos dourados como o sol, mas muito de vez em quando, nasce um entre eles com olhos vermelhos como sangue, ou verdes como o musgo numa árvore no coração da floresta. É através desses sinais que os deuses assinalam aqueles que escolheram para receber a dádiva. Os escolhidos não são robustos, e os seus rápidos anos sobre a terra são curtos, pois todas as canções têm de ter o seu equilíbrio. Mas uma vez dentro da madeira, perduram realmente por muito tempo. Mil olhos, cem peles, uma sabedoria profunda como as raízes de árvores antigas. Videntes verdes.
Bran não compreendeu, portanto perguntou aos Reed.
— Gosta de ler livros, Bran? — perguntou-lhe Jojen.
— Alguns. Gosto das histórias de luta. A minha irmã Sansa gosta das histórias de beijos, mas essas são estúpidas.
— Um leitor vive mil vidas antes de morrer — disse Jojen. — O homem que nunca lê só vive uma. Os cantores da floresta não tinham livros. Não tinham tinta, nem pergaminho, nem língua escrita. Em vez disso tinham as árvores, e acima de tudo os represeiros. Quando morriam, transferiam-se para a madeira, para folhas e ramos e raízes, e as árvores recordavam. Todas as suas canções e feitiços, as suas histórias e preces, tudo o que sabiam sobre este mundo. Os meistres lhe dirão que os represeiros são sagrados para os deuses antigos. Os cantores acreditam que eles são os deuses antigos. Quando os cantores morrem, passam a fazer parte dessa divindade.
Os olhos de Bran esbugalharam-se.
— Eles vão me matar?
— Não — disse Meera. — Jojen, está só o assustando.
— Não é ele quem tem de ter medo.
A Lua estava gorda e cheia. Verão percorria a floresta silenciosa, uma longa sombra cinzenta que se tornava mais magra a cada caçada, pois não era possível encontrar caça viva. A proteção da entrada da caverna ainda aguentava; os mortos não conseguiam entrar. A neve voltou a enterrar a maior parte deles, mas ainda lá estavam, escondidos, congelados, à espera. Outras coisas mortas vinham se juntar a eles, coisas que tinham sido em tempos homens e mulheres, até crianças. Corvos mortos pousavam em ramos nus e castanhos, com as asas incrustadas de gelo. Um urso das neves abriu caminho à força por entre a vegetação rasteira, enorme e esquelético, com a pele arrancada de metade da cabeça para revelar o crânio por baixo. Verão e a sua alcateia caíram-lhe em cima e fizeram-no em pedaços. Depois, empanturraram-se, embora a carne estivesse podre e meio congelada, e se continuasse a mexer enquanto a comiam.
Sob a colina ainda tinham alimentos. Uma centena de espécies de cogumelos crescia lá em baixo. Peixes cegos e brancos nadavam no rio negro, mas depois de serem cozinhados desciam tão bem como o peixe com olhos. Tinham queijo e leite das cabras que partilhavam as grutas com os cantores, até um pouco de aveia e cevada e fruta seca que tinha sido posta de parte durante o longo verão. E quase todos os dias comiam estufado de sangue, engrossado com cevada e cebolas e pedaços de carne. Jojen pensava que talvez fosse carne de esquilo, e Meera dizia que era ratazana. Bran não se importava. Era carne e sabia bem. Estufá-la tornava-a tenra.
As grutas eram atemporais, vastas, silenciosas. Eram lar de mais de três dezenas de cantores vivos e dos ossos de milhares de mortos, e estendiam-se até muito abaixo da colina oca.
— Os homens não devem andar vagueando por este local — avisou-os a Folha. — O rio que ouvi é rápido e negro, e corre cada vez mais para baixo até um mar sem sol. E há passagens que descem ainda mais fundo, poços sem fundo e súbitas chaminés, caminhos esquecidos que levam mesmo ao centro da terra. Nem o meu povo os explorou a todos, e nós vivemos aqui há milhares dos seus anos de homem.
Apesar dos homens dos Sete Reinos lhes chamarem "filhos da floresta", Folha e o seu povo não se assemelhavam nada a crianças. "Pequenos sábios da floresta" podia ter-se aproximado mais. Eram pequenos quando comparados com o homem, tal como um lobo é menor que um lobo gigante. Isso não quer dizer que seja um lobinho. Tinham uma pele cor de avelã, pontilhada com manchas mais claras como a de um veado, e grandes orelhas que conseguiam ouvir coisas que nenhum homem conseguia ouvir. Os olhos também eram grandes, grandes olhos de gato dourados que eram capazes de ver em passagens onde os olhos de um rapaz só viam negrume. As suas mãos possuíam apenas três dedos e um polegar, com aguçadas garras negras em vez de unhas.
E eles cantavam mesmo. Cantavam no idioma verdadeiro, por isso Bran não entendia as palavras, mas as suas vozes eram tão puras como o ar de inverno.
— Onde está o resto de vocês? — perguntou uma vez a Folha.
— Foram para dentro da terra — respondeu ela. — Para dentro das pedras, para dentro das árvores. Antes de os Primeiros Homens chegarem, toda esta terra que vocês chamam Westeros era para nós um lar, mas mesmo nesses tempos éramos poucos. Os deuses deram-nos vidas longas mas não um grande número, para não sobrepovoarmos o mundo como os veados sobrepovoarão uma floresta em que não existirem lobos para os caçar. Isso foi na aurora dos dias, quando o nosso Sol ia nascendo. Agora está se pondo, e esta é a nossa longa queda. Os gigantes também já quase desapareceram, esses que foram a nossa desgraça e os nossos irmãos. Os grandes leões dos montes ocidentais foram mortos, os unicórnios estão praticamente extintos, os mamutes reduziram-se a algumas centenas. Os lobos gigantes perdurarão mais do que todos nós, mas a sua hora também chegará. No mundo que os homens criaram não há lugar para eles, nem para nós.
Ela parecia triste enquanto dizia aquilo, e isso entristeceu também Bran. Foi só mais tarde que pensou: Os homens não ficariam tristes. Os homens ficariam furiosos. Os homens odiariam e jurariam vingança sangrenta. Os cantores cantam canções tristes, ao passo que os homens lutariam e matariam.
Um dia, Meera e Jojen decidiram ir ver o rio, apesar das advertências de Folha.
— Eu também quero ir — disse Bran.
Meera dirigiu-lhe um olhar fúnebre. Explicou que o rio ficava duzentos metros mais abaixo e para se chegar lá descia-se ladeiras íngremes e passagens retorcidas, e a última parte exigia descer por uma corda.
— Hodor nunca conseguiria trepá-la contigo às costas. Lamento, Bran.
Bran lembrou-se de uma hora em que ninguém conseguia trepar tão bem como ele, nem mesmo Robb ou Jon. Parte de si desejou gritar com eles por o deixarem sozinho, e outra parte quis chorar. Mas era quase um homem feito, portanto nada disse. Depois de eles partirem, porém, esgueirou-se para dentro da pele de Hodor e seguiu-os.
O grande moço de estrebaria já não o combatia como combateu da primeira vez, na torre do lago durante a tempestade. Como um cão, cuja rebeldia tivessem acabado à chicotada, Hodor enrolava-se e se escondia sempre que Bran tentava alcançá-lo. O seu esconderijo ficava em algum lugar no seu interior profundo, um poço onde nem Bran conseguia tocá-lo. Ninguém quer lhe fazer mal Hodor, disse em silêncio ao homem-criança cuja carne roubou. Só quero voltar a ser forte por um tempinho. Eu lhe devolvo, como devolvo sempre.